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Sim, também sou uma suffragette

Entre contradições e um intenso processo de ação coletiva, a história do movimento sufragista escreve-se com as mesmas penas e entusiasmos com os quais também se escreve a história de muitas revoluções inspiradoras que dão corpo ao que somos hoje.

Finalmente, pude ver o filme de Sarah Gavron As Sufragistas (Suffragette, 2015). A curiosidade era imensa e agora posso dizer que as expectativas não ficaram defraudadas. Este filme não impressiona como um exercício cinematográfico maior, mas emociona-nos com a história que conta, com a perspetiva escolhida, com os seus sublinhados. Além disso, o seu pathos inscreve-se numa potência iminentemente política, como a que se dá em nós na experiência às vezes sublime da identificação ou do (auto) reconhecimento, essa sensação de poder que surge quando nos sentimos entre pares. Nesse sentir descontrolado ou no romper dos limites, o que surge em nós não é compaixão, mas sim uma profunda solidariedade.

O filme As Sufragistas não conta a história da luta pelo sufrágio universal, situa-nos antes num dos períodos dessa luta e no contexto particular da história do movimento feminista britânico – estamos em 1912, em Londres, quando as suffragettes colocavam em prática o slogan inspirador que Emmeline Pankhurst repetia nos comícios que se realizavam clandestinamente: “We need deeds, not words” (“precisamos de atos e não de palavras”). Fartas de petições que acabavam recusadas e ridicularizadas no parlamento, as mulheres organizavam-se secretamente e saíam às ruas para partir montras, fazer explodir os postos de comunicação, deitar fogo a casas de ministros, passar panfletos pelo direito ao voto e recrutar militantes. Foram presas muitas vezes, realizaram duras greves de fome e foram submetidas a alimentação forçada, e quando se manifestavam publicamente eram repudiadas com violência policial. Para elas, desobedecer às leis não era um fim em si mesmo, era antes uma estratégia para chamar a atenção para a sua causa: queriam também ser “fazedoras” dessas leis - assim haveria razão para as respeitar. Ação direta, diríamos hoje.

Porém, a história do filme assume uma perspetiva diferente: acompanhamos o percurso de Maud Watts, uma mulher jovem que nasceu na lavandaria onde começou a trabalhar aos sete anos e que, entre acasos e um processo intenso de tomada de consciência política da sua condição de mulher e trabalhadora, acaba envolvida no movimento sufragista, tanto nas palavras, como nos atos. No filme, é Maud que acompanha Emily Davison ao Epsom Derby onde esta realiza o seu derradeiro ato heroico. Emily é personagem do filme e também das nossas vidas. Em junho de 1913, Emily estava na famosa corrida de cavalos e, determinada a conseguir atenção mediática para a sua causa, entrou na pista de corrida, acabando colhida pelo cavalo do Rei, no qual tentou colocar um lenço com as cores do movimento das suffragettes: branco, lilás e verde. Morreu poucos dias depois, devido aos graves ferimentos. Ironicamente, a sua trágica morte foi capa de jornal e no seu cortejo fúnebre participaram seis mil mulheres.

Conhecer um pouco do movimento sufragista inglês, na sua intensidade, na sua radicalidade e na sua justiça, seguindo os passos de Maud é “diferente” pelo menos por duas razões. Por um lado, porque para a Esquerda, e não só, o movimento sufragista surge muitas vezes encerrado na forma caricatural e pejorativa da rebelião das mulheres burguesas, tanto que a primeira vaga do feminismo parece apenas começar não com a conquista dos direitos civis (direito ao voto, educação, representação, etc.), mas apenas com as primeiras organizações socialistas de mulheres trabalhadoras e, portanto, com as reivindicações de classe e com os sindicatos de mulheres. Não é sempre assim o juízo sobre o tema, claro, mas julgo estar a exprimir aqui uma “impressão” tão vaga quanto verdadeira. Por outro lado, o filme de Sarah Gavron evoca este momento histórico do movimento sufragista ainda num outro plano inclinado das ideias feitas sobre este assunto: elas não são todas burguesas afinal e, sim, há contradições de classe entre elas.

Porém, o que realmente é desnudado é o impossível que parece inscrito nos corpos marcados pelo fardo da vida de todos os dias, e por tantas injustiças, que no exemplo de Maud é virado do avesso, em forma de coragem e inspiração. O seu gesto é de esperança. Podemos dizer que as mulheres que gozavam dos privilégios de classe poderiam mais facilmente sair à rua e reivindicar os seus direitos, é certo. Mas a experiência de subalternidade perante os maridos-proprietários, homens de negócios e ministros - e a própria sociedade conservadora não as excluía da opressão de género e também lhe roubava o direito ao voto. Ou seja, a realidade é sempre muito mais complexa e as contradições, transversalidades e intersecções que lhe dão matéria são muitas. O juízo político requer sempre imaginação para contornar preconceitos e uma forma de pensar alargada para combater a arrogância do saber instituído ou do ângulo perfeito. A história das suffragettes, sempre que surge simplificada, perde-se num olhar enviesado e obscurecido.

De qualquer modo, por causa deste filme já descobri o “Suffrajitsu”, entre muitos outros dados, nomes e informação interessante e desconcertante para pensar sobre tudo isto. O Suffrajitsu foi criado por Edith Garrud que praticava jiu-jitsu e se tornou instrutora desta arte marcial para as suffragettes. A violência e a repressão policial não obedeciam a quaisquer escrúpulos: eram mulheres, sim, muitas de famílias de classe média e alta, sim, mas todas, ricas e pobres, desafiavam o poder masculino instituído e por isso levavam todas por tabela. Garrud chegou a formar um corpo de proteção para a Emmeline Pankhurst e ensinou muitas suffragettes a esconder, nas suas longas saias, os “clubs” (tacos) que as ajudariam a defender-se dos polícias. Ver mais aqui (em inglês).

Insistindo no contágio da curiosidade sobre as suffragettes, há que conhecer melhor a história do Women's Social and Political Union (WSPU), fundado por Pankhurst em 1903 e que depois foi liderado pelas suas filhas e enveredou mais tarde por caminhos contraditórios até 1917, data da sua extinção. De uma cisão interna nasceu, em 1907, o Women's Freedom League, um movimento feminista pelo sufrágio universal e pela igualdade sexual e salarial. Em 1917, Emmeline Pankhurst e a sua filha Christabel também fundaram o Women's Party, com um pendor nacionalista e secundarizando a questão sufragista em detrimento do apoio ao governo inglês na I Grande Guerra. Em abril de 1915, até mudaram o nome da publicação do WSPU, The Suffragette, para Britannia. Certo é que só em 1928, com a reforma que resultou da aprovação do “Representation of the People (Equal Franchise) Act 1928” é que todas as mulheres, sem exceção, conquistaram o direito de voto no Reino Unido.

Entre contradições, capitulações, traições e também coragem, radicalidade e um intenso processo de ação coletiva, a história do movimento sufragista escreve-se com as mesmas penas e entusiasmos com os quais também se pode escrever a história, e as estórias, de muitas revoluções e experiências políticas inspiradoras que dão corpo ao que somos hoje.

Em Portugal, o sufrágio universal só chegou com a Revolução de Abril. Até lá, a apenas algumas mulheres lhes era concedido votar, como um favor em forma de privilégio. A primavera do direito ao voto para todas as mulheres cidadãs portuguesas chegou há apenas 42 anos. O primeiro e tímido raio de sol neste longo inverno foi o feito corajoso de Carolina Beatriz Ângelo, que sendo viúva e chefe de família assim colocou em prática o seu direito ao voto, em 1911. Mas depressa a I República alterou a lei para que não houvesse mais Carolinas. Depois, o direito ao voto para as mulheres seguiu o seu percurso em ziguezague e sempre com traços fortes de exclusão e privilégio, durante o período da ditadura militar e adiante, nos tempos sombrios do fascismo. Sim, foi há muito pouco tempo que tudo mudou. Podemos, ainda hoje, recordar avós e mães que viveram no tempo em que o Estado e a sociedade avaliavam a qualidade do facto de serem mulheres (mulher-casada, mulher-com-habilitações, mulher-com-emancipação-reconhecida) para lhes conceder o direito a votar. Abril trouxe-lhes, a elas e a nós, uma liberdade maior: essa dignidade da cidadania plena e do reconhecimento político que o Estado Novo lhes negou, tal como, amargamente, também a República.

O problema é que ainda é verdadeiro o que Maud afirma na audição do parlamento britânico. Continuamos a luta pela igualdade e liberdade aqui e em todo o mundo, porque ainda há em nós o desejo de que “talvez possa haver outro modo de viver esta nossa vida”.

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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