A recomendação do Bloco de Esquerda para que o governo altere o nome do Cartão de Cidadão para Cartão de Cidadania ainda será debatida em plenário da Assembleia da República mas, logo após o seu anúncio, deu-se um debate nas redes sociais e em alguns jornais revelador do estado da cidadania em Portugal.
Algumas intervenções tinham como objetivo menorizar a proposta do Bloco de Esquerda e pôr em causa a maturidade política do partido. Esse propósito falhado revelou apenas como algumas pessoas não reconhecem os mesmos direitos a mulheres e homens e promovem uma hierarquia de género que está na base das suas prioridades políticas.
Outras intervenções tinham como objetivo 'simplesmente' defender a língua portuguesa. No entanto a recomendação do Bloco de Esquerda não promove nenhuma alteração à língua portuguesa. Promove sim uma prática linguística não discriminatória e democrática, adotando recursos linguísticos já existentes para assegurar a visibilidade e a simetria das representações dos dois sexos.
Com menos furor houve ainda quem alvitrasse sobre a oportunidade, a pertinência e os custos da recomendação. Para os últimos a resposta é fácil na medida em que a concretização desta recomendação não implica aumento da despesa pública uma vez que, aprovada a recomendação, os novos cartões serão entregues apenas no momento da renovação. Sobre a oportunidade e discussões quejandas apenas lembrar a música de Geraldo Vandré: ''Vem, vamos embora, que esperar não é saber, Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.''
É possível que algumas das intervenções não tivessem qualquer intencionalidade, nem má vontade contra o Bloco de Esquerda, nem sequer sabiam que, muito antes desta recomendação, já várias mulheres tinham tomado posição pública contra o uso do masculino genérico, denunciando-o como um falso neutro, em defesa do direito à representação linguística da identidade.
A resistência à mudança até pode resultar apenas da inércia e dos hábitos linguísticos consolidados mas o debate parlamentar tem obrigação de ir mais além. O projeto de resolução do Bloco de Esquerda refere os compromissos já assumidos por Portugal nas várias instâncias internacionais, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 103/2013, relativa ao V Plano Nacional para a Igualdade de Género, Cidadania e Não-Discriminação 2014-2017, e as orientações do Guia para uma Linguagem Promotora da Igualdade entre Homens e Mulheres na Administração Pública publicado pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género como fontes desta recomendação.
A recomendação do Bloco de Esquerda supera ainda algumas reflexões e propostas já feitas na medida em que em vez de optar pela utilização de formas duplas – Cartão de Cidadão e Cartão de Cidadã – ou pelo emprego de barras - Cartão de Cidadã/ão – recomenda a substituição da forma marcada quanto ao género – Cidadão – por um genérico verdadeiro – Cidadania.
Apesar das políticas públicas para a igualdade de género, plasmadas nos planos nacionais e municipais, e das várias ações de sensibilização e informação sobre os direitos das mulheres levadas a cabo por organismos públicos e organizações não governamentais a polémica em torno da recomendação do Bloco de Esquerda é reveladora do estado da cidadania em Portugal.
A polémica em torno do Cartão de Cidadania deve fazer soar um alarme junto de quem tem responsabilidades no domínio da comunicação institucional, da linguagem usada em serviços públicos e também da comunicação social na medida em que os meios de comunicação social têm um papel fundamental na formação da opinião pública.
A proposta do Bloco de Esquerda não só responde a uma exigência das mulheres como vai mais longe e propõe uma solução inovadora que reconhece a importância de afirmar a cidadania, mesmo que através de pequenos passos, para desconstruir a ideologia patriarcal que ainda orienta a socialização de mulheres e homens através da atribuição de papéis sociais.
A representação linguística da identidade é um direito e na defesa dos direitos uma coisa é certa, o Bloco de Esquerda 'faz a hora, não espera acontecer'.