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Será o voto eletrónico um bom substituto do voto em papel?

Face a iniciativas cada vez mais visíveis para implementar o voto em Portugal, é fundamental olhar de perto para a forma como votamos. A potencial reformulação profunda do voto obriga-nos a analisar e avaliar os lados bons e maus de cada abordagem, seja a digital ou a analógica.

O voto eletrónico constitui, à primeira leitura, uma boa ideia. Um sistema que simplifique os processos eleitorais, apresse as contagens e possibilite até o voto à distância seria algo que beneficiaria a democracia.

No entanto, quando equacionamos as questões que este sistema coloca, fica evidente que os problemas e riscos poderão ser bem maiores do que qualquer vantagem que possa trazer. É que quando metemos computadores na equação tudo se complica de forma exponencial. Fará sentido prescindirmos do papel em nome das tais vantagens? Vamos a isso.

A importância de um voto auditável

Qualquer pessoa, mesmo que analfabeta, pode identificar a cruzinha no voto e participar numa recontagem. Essa é, aliás, uma das vantagens mais fortes do voto em papel: é universalmente auditável. A sua verificação pode ser levada a cabo sem necessidade de formação técnica ou preparação formal.

Com o voto eletrónico, tudo isto se esfuma. A verificação dos votos apenas pode ser feita por especialistas, operando sistemas e bases de dados inacessíveis e incompreensíveis pela enorme maioria dos cidadãos, com danos irreversíveis para qualquer noção de credibilidade do processo eleitoral e dos seus resultados.

Nas mãos dos cidadãos

Hoje, o processo eleitoral é levado a cabo pela Direção-Geral de Administração Interna, um órgão público que gere a logística necessária para a condução de processos eleitorais.

Com o voto eletrónico, assistiremos a um outsourcing dessa logística, a julgar pelas experiências-piloto já levadas a cabo em Portugal, em que várias empresas privadas participaram e providenciaram os sistemas de voto digital. Trata-se de uma privatização do processo eleitoral, com empresas privadas a gerir os processos, redes e bases de dados necessárias para tal sistema.

Os vários exemplos de voto eletrónico lá fora também nos mostram que a consequência são sistemas que não podem ser devidamente auditados pelos cidadãos, pois o código-fonte do software das máquinas de voto fica em segredo. Fica também nas mãos de privados a responsabilidade e o poder de determinar e publicar os resultados eleitorais. O controlo público do processo eleitoral é uma necessidade de uma democracia funcional, e é o voto em papel que continua a assegurar essa premissa.

E o ambiente? E os custos?

A utilização de grandes quantidades de papel costuma ser corretamente apontada como uma ineficiência do voto tradicional. Apesar de ser um material integralmente reciclável, é sempre pertinente questionarmos se não haverá uma solução que possa empregar menos recursos. O que já sabemos é que o voto eletrónico não é essa solução.

Para o ilustrar apressadamente, basta termos em conta que existem 3092 freguesias, sendo que cada uma necessitará de pelo menos um computador por cada mesa de voto. Se considerarmos agora os recursos necessários para a manufactura e transporte dos computadores, somada à necessidade de os substituir e atualizar de forma regular com o consequente desperdício de matérias-primas e produção de lixo eletrónico, e ainda recordando os enormes gastos em electricidade para manter tudo a funcionar, apercebemo-nos rapidamente que o voto eletrónico é bem mais oneroso para o ambiente.

E aqui nem considerámos os (bem maiores) custos envolvidos para os contribuintes na aquisição, manutenção e atualização regular de um novo contingente informático, ou sequer os custos e recursos de formação para todos os cidadãos que integram as mesas de voto.

O voto à distância

Nas eleições legislativas de 2019, foram amplamente noticiados problemas nos consulados e embaixadas que impediram muitos cidadãos e cidadãs de exercer o direito ao voto. Tal não se deveu a uma insuficiência do voto em papel, mas sim a uma grave falta de preparação por parte das instituições, que não cumpriram a sua obrigação de facilitar o processo para quem não pode votar em território nacional.

Uma transição para o voto eletrónico não resolveria este problema, apenas o iria amplificar: em vez de os envelopes não chegarem a tempo, iríamos ouvir que o sistema está em baixo, que os técnicos estão de folga... todas e todos temos experiência suficiente com situações do género para saber que introduzir plataformas digitais tem o efeito de ocultar qualquer tipo de responsabilidade, que pode ser delegada ao “sistema” sem culpados no final.

Se há algo que o processo eleitoral precisa é de transparência e responsabilização. Sem elas, e sem forma de confiar no bom funcionamento do sistema eleitoral, vamos agudizar mais ainda a desconfiança e desinteresse no voto.

Resistente à manipulação

Sabemos o que acontece quando os processos se convertem em bases de dados digitais. Cria-se o risco de fugas de informação e publicação ilícita de dados privados. Complica-se profundamente o acesso do cidadão ao funcionamento do sistema. E, pior de tudo, abre-se a possibilidade de manipulação em massa dos resultados eleitorais.

E este cenário está longe de ser paranóia especulativa: tanto a Holanda como a França determinaram o regresso ao papel precisamente devido aos riscos de interferência e manipulação.

Aqui o voto em papel também ganha sem discussão: a composição das mesas de voto complica imensamente as fraudes, e a possibilidade de uma recontagem real impossibilita a manipulação em larga escala. Mais: o voto em papel garante que cada pessoa emite o seu voto e não o de outros, que a contagem (e eventuais recontagens) pode ocorrer sem soluços, e que cada voto possa ser devidamente contado sem risco de interferências.

O dilema da abstenção

A abstenção é um problema particularmente complexo. E tal como qualquer problema social com alguma densidade, encontramos entidades e vozes a propor soluções tecnológicas que resolverão tudo (normalmente, as mesmas entidades e vozes que vendem essas soluções). É o que se passa também com o voto eletrónico, que é descrito frequentemente como antídoto para a abstenção.

Só que bastam poucos momentos para concluirmos que a raiz da abstenção vai bem para além do incómodo de nos deslocarmos a uma mesa de voto e marcar a cruzinha. Estudos levados a cabo na Suíça e Estónia deixaram claro que o voto online não resulta numa redução da abstenção. Existem muitos factores que tornam a abstenção um problema real que temos de considerar enquanto sociedade contemporânea (e que este texto não poderá abordar por questões de dimensão). Mas é por uma questão de honestidade intelectual que não podemos reduzir o problema a algo solucionável por uma app ou por qualquer outra solução técnica que passe por cima da dimensão social do problema.

Boa parte dos peritos em computadores, redes e informática posiciona-se do lado do voto em papel (se excluirmos aqueles que produzem e vendem sistemas de voto eletrónico, claro). Tal pode até parecer paradoxal, mas perceber de computadores é também compreender em que situações é melhor não os empregar. Se defendemos o voto em papel, é porque sabemos as armadilhas e complicações que surgem quando metemos computadores ao barulho.

Agora que se avizinha um renovado esforço em implementar o voto eletrónico em Portugal, após experiências-piloto a decorrer há mais de 15 anos, é essencial para a nossa democracia estabelecer este debate. Esta não pode ser mais uma medida que passa pelas frinchas, sendo que estão em causa as garantias que temos de um processo eleitoral íntegro e, por consequência, de uma democracia credível.

Artigo publicado no jornal “Público” a 23 de fevereiro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Designer e especialista em media digitais, professor do ensino superior, e membro da direção da D3 - Associação pela Defesa dos Direitos Digitais
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