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Senhor leitor, quem lava as suas meias?

A invisibilidade e a ausência de reconhecimento é a história de séculos do trabalho doméstico.

Imagine um país em que um grupo de pessoas – não por acaso quase todas mulheres e frequentemente imigrantes – eram tratadas, pela prática e pela lei, como cidadãs de segunda. Imagine um país em que a lei diz que o horário de trabalho por semana é de 40 horas, mas que para elas é de 44. Que nos feriados não se trabalha, mas que elas têm de trabalhar. Que há direito a um dia de descanso semanal, mas que a elas não se aplica. Que os contratos a prazo são para tarefas não permanentes, mas no caso delas podem ser “imotivados”. Que para se despedir uma mulher grávida é obrigatório um parecer da Comissão para Igualdade no Trabalho, menos para elas. Que quando o contrato de trabalho cessa há compensações que são devidas aos trabalhadores, mas que elas não as recebem.

Num país em que isto existisse, certamente a situação seria tratada como um escândalo. Os sindicatos decretariam greves e manifestações; os partidos (pelo menos os de esquerda...) bradariam contra tamanha injustiça; o Governo, envergonhado, faria algum anúncio sobre o tema; os media multiplicariam primeiras páginas e reportagens sobre o assunto; as instituições internacionais anunciariam preocupação e acenariam porventura com sanções caso a situação se mantivesse; o Presidente da República teria já feito, no mínimo, uma comunicação ao país.

Pois bem: esse país existe. Chama-se Portugal e, aparentemente, não se passa nada. Achará o leitor que estou a delirar? Não, não estou. Refiro-me ao trabalho doméstico e à lei que o enquadra, feita em 1992 e nunca alterada, e que faz com que esta atividade não seja regulada pelo Código do Trabalho, mas por um diploma próprio que é, em muitos sentidos, do século passado. Basta lê-lo (e reparar nos pormenores, e ter em conta que a maioria não são internas nem têm horário completo porque dão "umas horas")

Em Portugal há 114 mil pessoas que são trabalhadoras domésticas. Fazem tarefas sem as quais a sociedade colapsaria: limpam, cozinham, tratam da roupa, arranjam a casa, por vezes ficam com as crianças enquanto os pais não chegam e prestam cuidados a pessoas idosas que estão dependentes. São tão essenciais quanto invisíveis. Trabalham em casas privadas, onde não entram sindicatos comissões de trabalhadores nem inspeção de trabalho, pois estariam a violar um domicílio. Algumas acumulam o “trabalho a dias” com limpezas feitas através de empresas (das 6h da manhã às 9h limpam os bancos, as lojas, os ministérios; depois vão para a “casa das senhoras”). Algumas trabalham numa só casa, outras trabalham em mais de meia dúzia. Muitas não têm sequer contrato de trabalho (só de boca), seguro profissional ou descontos para a segurança social.

Participei ontem numa audição no Parlamento sobre este tema. Falaram sociólogos, juristas, dirigentes de associações e de um sindicato – e as próprias trabalhadoras domésticas. Falou-se do desastre completo que é a atual lei, das desigualdades na segurança social (sim, também aqui o regime é específico, as taxas de contribuição patronal são menores que as gerais e na esmagadora maioria dos casos não cobrem, por exemplo, a situação de desemprego), das situações de abuso e de assédio, das especificidades da profissão, da resistência histórica (em todos os países) em incorporar esta realidade no Direito do Trabalho, da inexistência de associações patronais, das dificuldades dos sindicatos, do isolamento das trabalhadoras, das situações em que as coisas, apesar de tudo, correm bem nesta profissão (sim, também há), das tentativas de organização e das iniciativas associativas.

É verdade que a invisibilidade e a ausência de reconhecimento é a história de séculos do trabalho doméstico – muito antes de ser assalariado, sempre feito pelas mulheres, sem qualquer remuneração e sem ser sequer identificado como trabalho (“nunca ninguém o nota, a não ser que não esteja feito”, dizia Angela Davis). Mas é demasiada gente e é demasiado importante para continuar remetido assim a tanta desatenção, desigualdade, ao silêncio e à invisibilidade.


Artigo publicado no site do Expresso, 8 de dezembro de 2017.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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