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“Saúde Mental” é teflon

Precisamos de compreender as perturbações psíquicas a nível social, como problemas que emanam de grupos ou contextos sociais, sem permitir que os serviços públicos actuem somente para ajustar cérebros ou mentes individuais, como se isso pudesse resolver o problema.

Diante do conhecimento de que hoje dispomos, a materialização do que se entende por promoção da “Saúde Mental” rompe com o paradigma patologia/cura, abrangendo outras dimensões da vida enquanto elementos cruciais na inteira compreensão da nossa saúde.

Como fruto (ainda que de pequeno porte) deste progresso, situamos, por exemplo, as diferentes respostas intentadas pelos poderes públicos, desde as duas últimas décadas, em desenvolver os cuidados no domicílio, menos dispendiosos do que os cuidados através da institucionalização (asilos, lares ou hospitais psiquiátricos), reforçando o papel da família e da comunidade na gestão da doença.

Estas respostas, levemente enquadradas na “Doutrina Social da Igreja”, bem como outros instrumentos incluídos no sistema de protecção social, norteiam-se, a julgar pelos documentos oficiais, pela unidade entre os determinantes psicológicos/psiquiátricos e os determinantes sociais.

Nessa linha, as actuais considerações científicas reconhecem a dimensão social dos indivíduos, isto é, o lugar social do qual se parte, a nossa condição socioeconómica, determinam, em larga medida, o sofrimento psíquico a que estamos mais ou menos permeáveis. Nas cartilhas dos serviços públicos de saúde e nos programas ministeriais consta, com efeito, que as condições de vida de cada um devem ser tidas em conta nos processos de reabilitação.

Sem flutuações ou tibiezas, sabemos que o “bem-estar” e a “autonomia”, que pontificam nos discursos moralistas e meritocráticos, não se sentem em vidas marcadas por violações de direitos; por quem vive em ambientes insalubres e sem dimensões adequadas; por quem chega ao fim do dinheiro quando ainda lhe sobra muito mês; ou que não se pode alimentar com qualidade e satisfação; que não consegue comprar a medicação prescrita; e por quem não teve ou tem como adquirir conhecimentos e trunfos indispensáveis à integração social, o que nos compreende em lugares fortemente desiguais quanto à vulnerabilidade ao sofrimento psíquico e, também, quanto ao sucesso dos processos de reabilitação, que encontrarão sérios limites naqueles que permanecem nas margens do rio que tudo arrasta.

No nosso país, sobre as políticas de “Saúde Mental”, todavia com o “combate ao estigma da pessoa portadora de doença mental” nos prólogos dos programas, servindo-me do estribilho mais recorrente da última década, observa-se uma flagrante contradição: vamos das grandes epopeias em torno do PRR, na combustão dos anúncios de uma parafernália de hipotéticos novos serviços, ou da estafada repetição do “agora-é-que-é-desta” no que tem que ver com a implementação de uma rede nacional dos cuidados continuados em saúde mental, e, ao mesmo tempo, esvazia-se e desabona-se o lugar estratega do Estado através da redução das suas funções redistributivas. Por outras palavras, enfatiza-se a dita dimensão social - expressa na necessidade de proporcionar condições materiais que possibilitem e favoreçam a reabilitação –, mas compromete-se a actuação dos serviços públicos, que permanentemente se deparam com dificuldades estruturais e conjunturais, e com a efemeridade e a pontualidade das políticas sociais – veja-se o recente e lamentável exemplo da decisão, por parte do Governo, de aplicar cortes no “Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas”.

A lógica sob a qual se edifica a política social em Portugal coloca, pois, um importante entrave às organizações que actuam no campo psiquiátrico, minimizando as suas possibilidades de resposta às expressões de sofrimento, dado o carácter paliativo e assistencialista dessas políticas, que restringem severamente as hipóteses de emancipação do doente, não atenuando sequer o impacto interno da privação sobre a psique, e circunscrevem o trabalho profissional à administração das sucessivas crises do capital.

Precisamos de compreender as perturbações psíquicas à escala social, como problemas que emanam de grupos ou contextos sociais, sem permitir que os serviços públicos actuem somente para ajustar cérebros ou mentes individuais, como se isso pudesse resolver o problema. Podemos discutir alterações químicas ou neurológicas particulares, mas apenas se as condições socioeconómicas colectivas que semeiam a desordem mental forem definitivamente contempladas nas políticas sociais.

Se a longínqua instituição asilar, alienada e alienante, na qual os doentes eram indivíduos sob custódia, deixou já de ser a viga-mestre no que aos cuidados psiquiátricos diz respeito, há, no presente, o consenso em torno do que é imperativo no processo de reabilitação, esse acto contínuo: o sentido e o sentimento de agência do caminho que se cumpre. E a riqueza, esse mecanismo fundamental, é verdadeiramente aquilo que permite às pessoas terem a posse de si próprias.

Em vista disso, e para que este consenso se concretize para lá das proclamações solenes e dos discursos-teflon, que não colam, é imprescindível repartir-se justamente a riqueza produzida, rompendo com o marasmo dos salários baixos, do trabalho precário e das jornadas intermináveis, das pensões miseráveis, em suma, da privação material que engendra a doença mental.

Sobre o/a autor(a)

Assistente social, deputado municipal do Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal de Espinho
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