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Salvar o Planeta
A expressão anda por todo o lado: salvar o planeta. É para salvar o planeta, diz-se, que é urgente combater as alterações climáticas. É para salvar a Terra, afirma-se, que há que proteger biomas, habitats, biodiversidade. É para salvar o mundo, defende-se, que é fundamental pôr travão na poluição, tapar o buraco na camada de ozono, regular as indústrias extrativas para que desastres como o de Mariana não voltem a acontecer ou nunca chegue a ter lugar a contaminação dos aquíferos que fornecem a escassa água de que dispõe o meu turístico Algarve, através do fracking que as empresas que andam a fazer prospeção dizem que não utilizarão mas que os contratos assinados expressamente permitem.
Lamento, mas a expressão está errada.
A questão não está em salvar-se o planeta, a Terra ou o mundo. A questão está em salvarmo-nos a nós.
O planeta não está em causa. Sobreviverá sem problemas às nossas alterações climáticas, à nossa poluição e à nossa destruição de habitats, como já sobreviveu a catástrofes muito mais graves e súbitas do que nós. Nem a vida no planeta está em causa. O que andamos a fazer ao planeta tem levado à extinção de muitas espécies e tudo indica que fará o mesmo a muitas mais mas, como aconteceu tantas vezes no passado, a extinção das plantas e animais que não conseguirem resistir-nos abrirá novas oportunidades evolutivas para as espécies capazes de se aproveitarem de nós. Até cenários de poluição extrema tendem a criar condições para o desenvolvimento de organismos capazes de se servir de toda a porcaria que vamos derramando no ambiente. Com tempo, e tempo haverá, o planeta acabará por sarar.
Só que acabará por sarar numa configuração diferente. E o problema é esse.
A nossa espécie desenvolveu-se e aumentou explosivamente de número graças a um conjunto muito específico de condições ambientais que permitiram, primeiro, a criação da civilização, e mais tarde o seu aprofundamento. Há muito quem nos julgue separados do ambiente, visto sermos hoje maioritariamente urbanitas, habituados e adaptados a condições cada vez mais artificiais, mas nada há de mais errado. Continua a ser o ambiente que nos permite a produção de comida para alimentarmos a multidão que hoje somos, e continua a ser o ambiente que vai tolerando a nossa construção de infraestruturas nos locais onde as vimos construindo há séculos.
E é isso, e não o planeta, que as alterações climáticas ameaçam. É o ambiente estável a que estamos habituados, a que ajustámos a nossa civilização, que está hoje em causa. São as nossas cidades costeiras que serão inundadas pela subida do nível do mar, são os mais produtivos territórios agrícolas do mundo que correm o risco de ficarem sem água à medida que a faixa desértica subtropical se expande para os polos, e são também os terrenos férteis que ficarão sob ameaça quando o mar for avançando rios acima. São as nossas vidas e o que construimos para as tornar mais confortáveis e até, por vezes, mais viáveis, que estão em risco com os fenómenos climatéricos extremos que tendem a tornar-se mais frequentes e violentos. Não é o planeta. Somos nós.
A biodiversidade é importante não porque sem ela o planeta morre, mas porque dela depende a descoberta de curas para doenças que nos matam ou a subsistência de organismos que exploramos para alimentação ou outros usos. Ou até, muito simplesmente, para nos dar ideias que sem ela não teríamos.
O aquecimento global deve ser travado não porque ele ameace de alguma forma o futuro da Terra, mas porque ameaça a existência de Lisboa, Londres, Paris, Nova Iorque, Tóquio, Luanda, Xangai, Rio de Janeiro e até de países e povos inteiros (as Maldivas, Kiribati, por aí fora). E também porque deixa tanto as populações forçadas a migrar para o interior dos continentes, como aquelas que já lá vivem hoje em dia, com muito menos território agrícola explorável e portanto sujeitas a sofrer uma deterioração significativa das condições de vida e, numa escala muito mais vasta do que aquela a que assistimos hoje em dia, e que já é inaceitável, de fome.
Não é, pois, salvar o planeta que nos deve importar. É salvar a adequação do planeta à espécie Homo sapiens. É isso que está em perigo: a nossa capacidade para continuarmos a sobreviver nesta bola azul perdida no espaço ou, no mínimo, para mantermos nela uma civilização pujante a funcionar.
O planeta, esse, facilmente sobreviverá. Nós é que provavelmente não.
Comentários
Bem esclarecido.
Bem esclarecido.
Parabéns por ter
Parabéns por ter provavelmente batido o recorde mundial de Antropocentrismo nesta abordagem.
Algumas pessoas mais sensíveis poderiam sentir-se incomodadas por as escolhas e atitudes conscientes da Humanidade resultarem na extinção de muitas espécies, mas vejo que não é o seu caso.
Mas mesmo dentro do Antropocentrismo, se pensarmos um bocadinho, descobrimos que a Biodiversidade não é apenas importante para a eventual descoberta de curas para as nossas doenças, mas também é essencial para não morrermos de fome: as espécies de plantas comestíveis, por exemplo, são uma pequeníssima fracção do número total de espécies... é muito provável que fiquem no lote das que forem para o galheiro.
A crítica não me parece
A crítica não me parece propositada, ou então, discutimos apenas o nome que damos às coisas. Antropocentrismo, ou especismo, é no entanto, também achar que os animais e as plantas só existem para nos servir e que é esse o seu valor. No entanto, a verdade é que existem porque existem. No caso dos animais, eles têm uma dignidade moral como seres passíveis de sofrer, sobre o qual não pode sobrepor-se nenhuma perspectiva utilitarista da sua existência. A meu ver, é importante proibir formas de propriedade sobre os animais (especialmente tendo em conta que a pecuária é uma das principais responsáveis por gases de feito de estufa, por desflorestamento tropical, e por poluição de aquíferos), e é também necessário dar à própria Terra e aos próprios seres que lá existem, tenham ou não tenham determinada característica, direitos inscritos na lei, como o fizeram estados como a Bolívia. É necessário deixarmos de fechar os olhos à estupidez monumental da pecuária, ao sofrimento desnecessário de tantos seres, com influência na nossa própria saúde. Os animais e restante vida não são commodities para trocar em Wall Street.
Aproveito também para mandar um abraço ao Jorge Candeias, antigo amigo virtual (ImagiNations) que nunca conheci mas cujas ideias admirei.
Respondo o mesmo que respondi
Respondo o mesmo que respondi ao João Morais, de uma forma ligeiramente diferente: a urgência do que há a fazer não se compadece com a tentativa de pôr ênfase em ideias que, para a generalidade das pessoas, são extremistas. A urgência do que há a fazer exige que se consiga encontrar uma linguagem que tenha impacto imediato sobre uma maioria significativa de pessoas, porque só com a participação ativa da população será possível pôr travão aos efeitos mais graves e mais irreversíveis das alterações climáticas. A generalidade das pessoas não é fácil de sensibilizar para a extinção de uma espécie de rela recém-descoberta algures na Amazónia (uma fração significativa é mesmo impossível de sensibilizar para isso), mas a destruição de cidades costeiras ou a inundação de campos de cultivo toca-as de forma direta. E é por isso que o discurso ecologista devia ser bastante mais antropocêntrico do que é, especialmente num momento de urgência como o atual.
Afinal, o que é mais importante? Preservar a biodiversidade e reverter as alterações climáticas, sejam quais forem os argumentos que levarem a essa preservação e reversão, ou ter razão nos argumentos?
Foi inteiramente propositado
Foi inteiramente propositado e muito consciente.
Eu sei que para as pessoas mais sensíveis às questões ecológicas aquilo que está fora da esfera do humano tem valor em si mesmo. No entanto, essas pessoas são uma muito pequena minoria. Para a vasta maioria, as coisas só têm valor na medida em que têm impacto sobre elas próprias ou, no máximo, sobre as suas semelhantes. Por conseguinte, o discurso da preservação da natureza porque sim, porque ela vale por si, não passa. E é fundamental que passe, porque disso depende não só a preservação dos equilíbrios naturais, mas a preservação da própria civilização. Fazer as pessoas compreender que a riqueza do mundo natural tem valor imediato para elas é a única maneira de preservar essa riqueza. Se isso parece insensível a quem não compreende estes factos, paciência.
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