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Sacudir a água do capote: transferência da ação social para as autarquias

A transferência de competências do Estado central para as autarquias não é tema novo e a ação social passará a caber aos municípios a partir de janeiro de 2023. Esta transferência enquadra-se num processo mais amplo de erosão dos princípios da segurança social.

A transferência de competências do Estado central para as autarquias não é tema novo e a ação social passará a caber aos municípios a partir de janeiro de 2023. Como escreveu em março a Carolina Gomes, o processo em curso é “uma municipalização (...) que ameaça agravar as assimetrias regionais, ao comprometer a universalidade e igualdade (...), ao mesmo tempo que promove uma total desresponsabilização do Estado”.1 Esta descentralização abarca também áreas como a educação e a saúde, mas a ação social tem as suas especificidades e enquadra-se num processo mais amplo de erosão dos princípios da segurança social.

Ao contrário do caráter ocupacional (e patriarcal) que orientou a escassa proteção social do Estado Novo, a Revolução trouxe consigo a universalidade da segurança social como parte da construção de uma cidadania verdadeiramente democrática que, por isso, é também social. Contudo, a construção tardia do Estado social em Portugal não escapou ao paradigma neoliberal que o foi esquartejando e deturpando. Parte deste esquartejamento foi a introdução de condicionalismos no acesso à proteção social, com condições de recursos que negam o acesso de muitas pessoas a medidas concretas e outras condições para a manutenção do acesso a essas medidas, entre as quais o Rendimento Social de Inserção.

Aquele que é supostamente um direito social e universal – e por isso mesmo começou por chamar-se Rendimento Mínimo Garantido – é condicionado pelo cumprimento do contrato de inserção que pretende dar conta dos problemas vividos pelos beneficiários e envolvê-los (e responsabilizá-los) pela solução dos problemas que os impedem de integrar os esquemas de organização e proteção social que permitem a autonomia, sobretudo o mercado de trabalho. Estes problemas concretos são de naturezas múltiplas (saúde, estrutura familiar, etc.) e variam entre beneficiários. A ação social desempenha, portanto, um papel crucial no esquema do RSI e é precisamente este pendor que passará a ser responsabilidade das autarquias. Logicamente, a ação social é já desenvolvida ao nível local, tendo em conta a necessidade de proximidade com os beneficiários. No entanto, a transferência da ação social para o nível municipal traz perigos.

É inegável que um dos principais problemas do RSI é o baixo valor da prestação. Em setembro, este era de cerca de 120€ por beneficiário e de 260€ por família. No entanto, e especialmente tendo em conta estes valores, a ação social torna-se essencial como forma de proteger e promover a autonomia dos beneficiários, o que requer recursos e uma avaliação do trabalho feito, de maneira a melhorá-lo continuamente. Para além de reduções no valor do RSI e do cada vez mais difícil acesso à medida, os sucessivos governos têm-se também demitido da ação social. Ora, se por um lado a contratualização da ação social com as IPSS contraria já o princípio de uma segurança social unificada, privatizando de certa forma os serviços sociais e dando espaço a assimetrias, por outro lado esta fragmentação da política social facilita a invisibilização dos beneficiários da ação social, em geral já excluídos dos esquemas de proteção em torno dos quais existe maior mobilização social, nomeadamente do regime contributivo. A municipalização da ação social contribui para esta dualização da proteção social, constituindo uma nova demonstração da desresponsabilização do Estado neste campo.

Para este perigo político contribui ainda a incerteza que se verifica relativamente aos recursos que serão transferidos para as autarquias para levar a cabo esta empreitada. O Governo sublinha que “são já” 90 os municípios que voluntariamente aceitaram esta responsabilidade. Diria antes que são “apenas” 90 e que a resistência a esta descentralização não é um mero apontamento. É a razão pela qual esta tem sido constantemente adiada e diria que por dois motivos: o financiamento - sendo que, por exemplo, a Câmara do Porto afirma que passará a ter recursos para pagar apenas a dez técnicos sociais para gerir 5 mil processos RSI2 – mas também a falta de vontade dos autarcas em assumir esta responsabilidade política. Regra geral, os beneficiários de RSI são aqueles a quem o Estado já falhou. Falhou na construção de um mercado de trabalho capaz de garantir vidas estáveis e de bem-estar, marcado pela precariedade e que exclui muitos dos direitos do trabalho, nomeadamente do subsídio de desemprego; falhou ao não impedir que ter filhos constitua um risco acrescido de pobreza (a maior parte dos beneficiários são menores); falhou ao tornar a doença fonte de pobreza; falhou ao não combater uma política patriarcal que atira famílias monoparentais também para a pobreza. O Estado central faz assim com que a Segurança Social sacuda a água do capote, empurrando para terceiros a responsabilidade por aqueles cujas vidas são o espelho do fracasso político e fá-lo-á, provavelmente, sobrecarregando quem já se encontra sobrecarregado – os técnicos sociais – à custa, em última instância, dos próprios beneficiários de RSI.

Notas:

Sobre o/a autor(a)

Ativista anti-propinas, bolseira de investigação e dirigente do Bloco de Esquerda.
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