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As revoltas necessárias

Um novo espectro paira sobre a Europa, o Ocidente e a sua burguesia: os tumultos.

Em Portugal, o paradoxo parece ser o de ainda não terem surgido. Ou de se terem manifestado através de subprodutos populistas, em que brilha o ódio à politização da discussão e aos partidos. Se os tumultos ocorrerem, então terão de ser rapidamente eliminados porque podem prejudicar o ajuste orçamental. Pacheco Pereira já circunscreveu o potencial problema: algumas franjas não controladas do Bloco de Esquerda, uma vez que o PCP cultiva uma cultura organizacional de respeito pela legalidade. Passos Coelho, por seu lado, avisou com masculino vigor: o governo não será brando com os tumultos. Brandura, apenas nos costumes; violência na economia e repressão nas ruas, se “tomadas de assalto”. Violência, ainda, nos bastidores da vida social: como não a encontrar na família, na violência doméstica, nas rixas e acidentes de trânsito ou nas mais quotidianas interacções sociais? Em suma: violência “de cima”, do Estado, na punição da pobreza, na estigmatização do protesto e, quando necessário, na sua criminalização. Violência “por dentro”, pelas entranhas, nas trocas entre iguais (veja-se o último filme de João Canijo, clarividente a este respeito) – violência implosiva em que os pobres destroem outros pobres, rivalizando pelas migalhas ou falhando redondamente o alvo da frustração. Ausência, em suma, da violência “de baixo” – a da Comuna de Paris, do Maio de 68, da Primavera árabe.

Estará a sociedade portuguesa adormecida? Muitos sectores populares interiorizaram, por enquanto, a lógica do necessário. É necessário o ajuste orçamental, logo inevitável a transformação da relação entre o Estado e as classes sociais, das quais, aliás, se sentem exteriores (são apenas pessoas atomizadas, excluídos de um determinado perfil de estilos de vida, imbuídos do que Robert Castel apelidou de “individualismo negativo”, regressivo, estéril – tudo o que é sólido se dissolve no ar, como falar de classes sociais se já não há “empregos”, “carreiras” ou mesmo “empresas”, apenas cinema, madame blanche e parola – que saudades de Cesariny! - , ou mutatis mutandis, supermercados, centros comerciais e futebol -?). Nada mais se pode desejar fora desta prisão. Não há futuro, porque não há opção. Se não há opção, não há política. Se não há política, não há democracia. Então, a mudança é não só desnecessária, como impossível e nada “sexy”, em particular para os fazedores de opinião.

A questão todavia, para este que escreve, o problema estrutural e conjuntural do país é, precisamente, a míngua de tumultos transformadores, capazes de exprimirem em projectos estruturados e estruturantes de futuros alternativos algo mais do que a mera raiva ou o ódio circunstancial.

Peço apenas, por um momento, que meçam a desigualdade da investida; peço que pensem em tudo o que foi feito ou está ser preparado na legislação laboral, nas transferências sociais, na institucionalização de um Estado-de-sopa-dos-pobres. E, por enquanto, um resignado silêncio nas ruas, uma não-resposta de consentimento difuso…

É esta a questão, nos seus exactos termos: precisamos de tumultos imaginativos, que aliem os novíssimos movimentos sociais aos partidos-movimento e que sejam consequentes; festivos, mas conscientes dos termos da luta; espontâneos, mas eficazes na transformação política, capazes de expressarem mais do que as fúrias do momento. Tumultos democráticos, em suma, autêntica festa da democracia, capazes de serem mais do que a mordidela do cão enlouquecido no país cabisbaixo.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, professor universitário. Doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação, coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
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