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A Rainha de copas e os passos do Coelho

A história agora é outra. Não vivemos nem no país, nem na Europa das maravilhas. A rainha de copas, autocrata e narcísica, aparece engalanada de bugigangas financeiras.

É tarde! É tarde! É tarde até que arde!
Ai meu Deus! Olá, adeus!
É tarde, é tarde, eu sou uma fraude!”
O coelho, em Alice no país das maravilhas

O coelho branco da Alice anda sempre atarefado com um relógio nas mãos, cheio de medo da rainha de copas. Quer aumentar o tempo. O coelho é uma fraude. É ele próprio quem o diz.

A história agora é outra. Não vivemos nem no país, nem na Europa das maravilhas.

A rainha de copas, autocrata e narcísica, aparece engalanada de bugigangas financeiras. A sensualidade da finança desnorteada, ou norteada por secretos e públicos propósitos tão confessados quanto inconfessáveis, põe-lhe o coração a bater ao galope dos juros que como tenazes vão garrotando as economias dos países bêbados. Países bebedolas. Cortem-lhes a cabeça, vocifera a rainha.

Há nesta história uma ambiência surreal, simétrica da ambiência vivida agora em cada um dos países de economia aturdida, cujas maravilhas se vão perdendo para serem entregues como penhores à rainha branca.

O Coelho, esse animal ziguezagueante, é um pimba liberal. Falta-lhe estatura intelectual, falta-lhe cultura política e sobra-lhe ideologia, aliás, mal assimilada. Má ideologia, aplicada por um cábula rasteiro e incompetente, dá os resultados que se conhecem. Atinge o supra sumo do mau, aterrando com grande banzé no coração do péssimo.

O coelho lisonjeia a saloia alemã, anseia por ter a mesma lábia do vira-latas francês, diz uma ou outra frase pomposa e rançosa, assinando por baixo o que há para assinar, na azáfama da lisonja.

Esta gente insulta-nos todos os dias. Parvos. Somos todos parvos, uns parvalhões, uma cambada de românticos, uns sonhadores perigosos, uns inconscientes manhosos, uma gente sem consistência, líricos de meia tigela. Os nossos sonhos são meras bizantinices, coisa que o vento já levou, como o livro que fez o filme.

Esta gente é cinzenta. Parece gente da guerra-fria.

Sócrates e o outro mal-encarado, essas outras delirantes personagens do pesadelo, lixavam-nos a vida com alguma solenidade. Escolhiam o horário nobre, punham-se muito direitos, colocavam – como se fosse um adereço – um ar razoavelmente sério e a seguir disparavam.

Estes nem sequer a solenidade usam. Lá vai água. Aqui vai disto.

Com um paleio natural, naturalíssimo, quase mascando chiclete, sem alvoroço, com um patuá desenrascado, dizem en passant, ah é verdade, vamos cortar-vos os salários e reformas mais uma vez. Solenidade, nenhuma.

A Europa dos países é agora uma Europa síntese: Alemanha grande e França pequena, com aquela arrogante menoridade e baixeza que os medíocres sempre ostentam. Cimeiras de surdos, agências de pechisbeque, dolosas, inaptas rainhas de copas e de lata, coelhos sabujos, franceses rastejantes, são os elementos traumáticos e oníricos do sono letárgico em que estamos mergulhados.

A Europa entregue a doidivanas vai-se esboroando em cimeiras palacianas.

As histórias para crianças têm sempre aplicação ao real da vida, por muito surreais que sejam. Estão, aliás, todas ligadas, pertencendo à lua cheia da infância. Apesar da complexidade do livro de Alice, a rainha de copas é semelhante à rainha madrasta da Branca de Neve, e à fada má da Bela adormecida. Algures, por aí, também anda o capuchinho vermelho, o lobo e o puto que disse o rei vai nu.

E o rei vai, de facto, nu. Para quem não se lembra, neste conto de Anderson, dois aldrabões, dizem ao rei que o vão vestir de um tecido que só os espertos veem. Não há qualquer tecido. O rei vai nu. Mas como ninguém quer passar por parvo, todos dizem, que bem vestido está o rei. Até que um miúdo disse assim, olha, o rei vai nu.

Foi isso que declarou o deputado do PS, Pedro Nuno Santos. O rei vai nu.

As histórias infantis têm quase sempre finais felizes, o que não acontece no Portugal que nos calhou viver. Na história do rei pelado todos se riram e viram que tinham sido enganados. Aqui, todos continuaram a gabar a vestimenta real. Na história, o puto foi aplaudido. Aqui, nesta coisa mole em que este país se tornou, o deputado foi criticado com rispidez, por todos os espertos deste reino tonto. Tonto e infeliz.

A Alice de Lewis Carroll pergunta ao gato, que caminho deve seguir. Isso depende para onde queres ir, responde-lhe o felino. Sábias palavras. Para onde queremos ir?

A rainha, o gato, o chapeleiro e tantos outros personagens povoam-nos os dias.

“Nunca ninguém conquistou nada com lágrimas”, diz Alice.

Ou com sofrimento. Ou com empobrecimento. Ouviste, coelho?

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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