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As raízes obscuras da crise da direita

Está na moda um argumento curioso: a crise da direita é passageira, porque se cura mal voltar ao poder, a da esquerda é duradoura, porque se agrava quando está no poder. O director do Expresso, ou Pacheco Pereira, agora empenhado no novo programa do PSD, e tantos outros, dão corpo a esta teoria.

Deixo para outro momento a segunda parte do argumento, que tem muito de verdadeiro. A esquerda que governa como a direita não pode governar à esquerda, como é evidente, e portanto perde sentido e programa. Mas este processo é muito antigo e já cavou trincheiras muito fundas, e é escusado deslumbrar-se quem quer que seja com a sua descoberta. Tony Blair é um trabalhista para a guerra suja, e a guerra foi travada no Iraque como na destruição do serviço nacional de saúde. Sócrates é Tony Blair em Portugal, sem a guerra no Iraque mas com todas as outras. E a sua reafirmação enfática como "esquerda moderna" está na proporção exactamente inversa da qualidade da sua política.

Mas começo pelo princípio, a primeira parte do argumento: será mesmo que a crise da direita é passageira? A olhar para os factos, parece que não. Alguns dos regimes partidários tradicionalistas desmoronaram-se, como em Itália, e sobrou Berslusconi; outros governantes de direita, como em Espanha, perderam o pé, e não sobrou ninguém. Mas, ainda assim, tudo isso é a circunstância da rotatividade.

Há uma razão mais profunda para a crise da direita. É que a direita não tem valores nem tem projecto. Um exemplo serve para o demonstrar. Os noticiários têm dado conta da decrepitude de Augusto Pinochet, mas tratam a questão como se fosse simplesmente o fim de um ditador dos trópicos, coisa distante e nunca vista. Quando, há uma semana, morreu o Prémio Nobel da Economia Milton Friedman, ninguém relacionou os dois homens.

Ora, Friedman não era somente o anti-Keynes, o liberal empedernido que se opunha a toda a intervenção pública. Foi também o economista cujos assistentes e apoiantes foram para o Chile orientar a política económica de Pinochet assim que o seu golpe de Estado venceu, a 11 de Setembro de 1973. Os liberais à Friedman desprezam a liberdade e nem se preocuparam em escondê-lo.

O liberalismo, o dos liberais que governam, despreza a liberdade. O governo norte-americano pode apoiar a teocracia saudita, como antes apoiou a taliban, tal como pode negociar com Sadddam Hussein ou depois com os gangsters do petróleo que o substituíram: os liberais gostam de negócios e menos da liberdade.O governo francês apoia sem constrangimento quantas ditaduras africanas lhe calhem em sorte. Os sucessivos episódios da corte neo-conservadora de George W. Bush é revelador desta facilidade, na guerra como na política.

A direita fica assim sem raízes. Não tem princípios nem políticas, tem oportunidades e manobras. Não tem valores, tem débitos e créditos. Por isso é que a sua crise é tão profunda: para governar, tem de renunciar ao que prometeu ou a qualquer imagem de projecto, tem de tornar de alguns o que era de todos, tem de destruir o mais depressa possível tanto quanto for possível dos recursos públicos.

Pior ainda: como a acumulação mais generosa é garantida pelas rendas que o Estado paga pela oferta privada de serviços públicos, como a saúde, esta direita precisa desesperadamente do que anuncia querer destruir. De facto, não há ninguém mais estatista do que a direita económica, que só se dirá liberal enquanto tal for útil para obter o regime de monopólios que pretende.

Como é que, copiando a política de uma direita em crise, a esquerda blairista poderia evitar mergulhar também nesta crise?

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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