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Qui suis-je? Nos 70 anos da libertação de Auschwitz
O fim do Holocausto, assinalado na data da libertação do campo de concentração e extermínio de Auschwitz, o mais emblemático de toda a máquina genocidária do nazismo alemão, celebrou-se este ano, a 27 de janeiro, Diz-se que as efemérides servem para reforçar a memória dos acontecimentos da História com os quais devemos aprender. Ou seja, se a História faz sentido é porque acreditamos num progresso civilizacional que pode ser empreendido, se a tornarmos vivo e produtivo no presente.
Registei, com agrado, a persistência daqueles e daquelas que, 70 anos depois, consideraram que, na comunicação social, nas redes sociais, em atividades pedagógicas nas escolas, e de outras formas, vale a pena relembrar o Holocausto. Tratou-se de fazer passar a mensagem ainda indispensável de que não se pode discriminar, marginalizar nem violentar ninguém por motivos de raça ou religião (poder-se-ia acrescentar nacionalidade, sexo, orientação sexual e outras formas de diferença, que seriam igualmente relevantes). Registei também, todavia, a fraca associação à fortíssima sequência de acontecimentos e debates em torno do caso Charlie Hebdo que em tão pouco tempo parece ter sido arrumada para debaixo do tapete.
Recordar Auschwitz na Europa de hoje implica repensar quem somos na complexidade de dinâmicas sociais e políticas que Charlie Hebdo trouxe à superfície. A onda “Je suis Charlie” revelou uma bondade inquestionável da maioria daqueles e daquelas que saíram à rua indignado/as pela violação do direito à vida, à segurança e à liberdade de expressão. Fizeram-no com toda a justiça, e ainda bem que o fizeram. Mas é preciso ter consciência de que, se tal indignação se produziu com esta rapidez e dimensão não foi somente devido ao horror dos crimes, mas também por duas razões: primeiro, porque foram cometidos no centro do bastião europeu que se considera inexpugnável, ao contrário do resto do mundo, onde o Ocidente intervém pela força ao arrepio do direito internacional e não pela mão de terroristas, mas dos próprios governos. Em segundo lugar, na perspetiva das populações, porque estes atos terroristas apenas confirmam uma ideia de inimigo civilizacional que tem vindo a ser construída pelas ideologias dominantes no Ocidente com particular força desde o fim da Guerra Fria. Ou seja, predomina entre nós um tipo de pensamento que se constrói na ideia de diferença, na ideia de incompatibilidade, na ideia de hierarquia e, inevitavelmente, numa ideia de superioridade para o Ocidente.
Um ataque violento perpetrado em nome de Alá por alguns fanáticos não implica, em rigor, senão os próprios, embora se deva analisar com profundidade os contextos em que tais fenómenos podem surgir e proliferar. Não implica, em rigor, os muçulmanos, que, apesar disso, foram forçados a vir a público explicar pela enésima vez o óbvio: que são gente pacífica e que o Islão condena estes atos tanto quanto todos/as os/as que foram Charlie. Porém, foram os únicos, o que é significativo.
O caso Charlie Hebdo não suscitou, nos/as europeus, cristãos ou não, nenhum impulso visível e manifesto no sentido da autocrítica. E porque deveria, se os culpados foram os Outros, os não-europeus, os não-cristãos, os não-ocidentais? Esta atribuição de culpas, fácil, generalizadora e injusta, possivelmente inconsciente e irrefletida, é precisamente onde quero chegar.
“Je suis Charlie” como defesa da liberdade de expressão – um “valor ocidental”, foi o que mais se repetiu nos nossos média, como se não fosse um valor para outras sociedades e culturas e como se o respeito por esse valor inquestionável fosse exemplar no Ocidente. Se é verdade que a liberdade de expressão é uma das conquistas da modernidade ocidental, foi desde sempre também uma das suas maiores hipocrisias, pois a mesma modernidade construiu-se sobre a opressão colonial e racista de outros povos, a qual durou até aos anos 60-70 e, em Portugal, só acabaria com uma guerra sangrenta. As linhas fundamentais deste pensamento colonial e racista perduram no Ocidente não apenas nos conflitos que asseguram interesses económicos e geoestratégicos noutros pontos do globo, como na ação das multinacionais, como, sobretudo, nos discursos e políticas visando a imigração, ou seja, o Outro racialmente inferior que penetrou no território branco e ocidental e que “convém” expurgar. A islamofobia está aí para isso. Da Alemanha, cresce o PEGIDA, que se espalha tentacularmente a outros países europeus, e se há, efetivamente, europeus e europeias que se manifestam contra este racismo europeu, muitos/as mais há que fecham os olhos, que sustentam o enorme crescimento da extrema-direita, ou que apoiam as políticas securitárias e anti-imigração dos governos de centro-direita um pouco por toda a Europa.
Pelos vistos, aprendemos pouco com Auschwitz. Falhámos o mais concreto e o mais importante: que o nazismo se deu em solo europeu, foi construído ao longo de décadas em que o inimigo não era o Islão, mas o judeu, não somente para os alemães, mas para a generalidade da Europa. O nazismo cresceu numa Alemanha depauperada pelas consequências da I Guerra Mundial (uma guerra europeia, imperialista), pela crise económica de 1929 (que tanto se assemelha à que hoje vivemos), com um número desmesurado de desempregados e marginalizados prontos a ser mobilizados violentamente contra um bode expiatório e a eleger quem a tal os inspirasse – Hitler. Que se “os outros também fizeram e fazem massacres”, nós, europeus, fizemos o maior. E que se não ousarmos esta autocrítica e olharmos primeiro para os nossos erros antes dos erros dos “outros”, Auschwitz não terá servido para nada. Não estaremos à altura das nossas responsabilidades em nome dos direitos humanos nem na Europa, nem no resto do mundo, a quem dificilmente poderemos dar lições. E Charlie só servirá para novos Auschwitz.
Comentários
O Nazismo tem uma longa
O Nazismo tem uma longa génese que é impossível detalhar neste comentário, mas, gostaria de chamar a atenção para alguns pontos.
1. Em 1918 rebenta a revolução na Alemanha, o país é coberto de conselhos operários e de soldados (sovietes), o Kaiser refugia-se no estrangeiro, é proclamada a republica e os trabalhadores entregam o poder ao seu partido de sempre, o SPD.
2. Desde o primeiro momento o SPD de Ebert e Noske conspiraram secretamente em conluio com os generais do Estado Maior para sufocar a revolução. É muito ilustrativo o livro de Sebastian Haffner sobre a revolução de 1918.
3. Esta primeira vaga da revolução é contida pela traição do SPD e culmina com o assassinato de Rosa Luxemburgo, Karl Libknecht e Jogiches, elementos destacados da ala esquerda do SPD e que tinham formado pouco tempo antes o KPD (partido comunista)
4. No entanto a crise continuava, agravada pelas condições draconianas do tratado de Versailles, e os trabalhadores mantinham no essencial as suas posições. O SPD sofre uma cisão enorme com uma ala esquerda e por sua vez desta ala esquerda sairá uma ala que adere ao KPD. O Partido Comunista torna-se um partido de massas com mais de 500.000 membros.
5. As condições da sua formação, o desaparecimento de alguns dos seus principais dirigentes, as condições difíceis em que iniciou a sua vida Internacional Comunista, contribuíram para uma série de erros do KPD - a sua primeira reacção ao putsch de Kapp, a tentativa de golpe em Março de 1921 e a hesitação fatal em 1923 quando as condições para conquistar o poder estavam criadas, conduziram à derrota da revolução da Alemanha e à desmoralização do KPD.
6. Por outro lado esta derrota acentuou o isolamento da Rússia soviética e contribuiu para o ascenso e estabilização da clique estalinista. Este ascenso teve o seu reflexo internacional na campanha de "bolchevização" dos partidos da III Internacional que os foi transformando em correias de transmissão dos interesses dessa clique.
7. A traição do SPD e as inconsistências do KPD criaram um impasse junto aos trabalhadores e aos milhões de desempregados que procuravam uma saída para a crise que se acentuou em 1929 com a grande depressão.
Essa ausência de solução para a crise, foi alimentando o crescimento dos Nazis que iam recebendo no seu seio camadas cada vez maiores da peque-burguesia arruinada.
8. Nas eleições de 1930 o Nazis tiveram 6.000.000 de votos (18%), mas, o SPD e o KPD juntos somavam quase 11.000.000. O problema é que o KPD obedecendo a Moscovo considerava o SPD (social-fascistas!!) o seu principal inimigo e assim em vez de unir as fileiras dos trabalhadores para em conjunto combaterem os Nazis e derrotarem na rua as sua forças de assalto (as SA), o Partido Comunista desorganizou e desmoralizou o conjunto dos trabalhadores o que enfraqueceu a resistência ao ascenso dos Nazis.
9. Nas eleições de Julho 1932 os Nazis mais do que duplicam os seus votos, tornando-se o maior partido, mas, mesmo assim só com 37,3% dos votos, sendo que o SPD e o KPD juntos somavam 35,8% dos votos.
Mais importante ainda, os Nazis que não tinham como nunca tiveram uma maioria absoluta, não conseguiram formar governo o que resultou em novas eleições em Novembro de 1932.
10. Nesta eleições os Nazis perderam 2.000.000 de votos ficando-se pelos 33%, o KPD e o SPD juntos somavam 37%.
11. As eleições seguintes em Março de 1933 já foram realizadas depois do golpe palaciano Hitler-Papen, da dissolução do Reichstag, do incêdio do Reichstag , da prisão aos dirigentes comunistas e da violenta perseguição e ataques a todos os partidos e organizações dos trabalhadores. Mesmo assim o KPD ainda teve cerca de 5.000.000 de votos e o SPD cerca de 7.000.000.
12. Na altura em que Hitler assume o poder, em Janeiro de 1933, tanto o KPD como o SPD tinham apoio de massas e tinham as suas organizações, incluindo organizações armadas, relativamente intactas. No entanto os dirigentes de uns e de outros recusaram-se a combater abertamente a ascensão dos Nazis, acabando muitos por pagar com a vida a sua total falência politica. O movimento organizado dos trabalhadores foi totalmente destruído.
13. Para concluir o Nazismo só cresceu e venceu devido à total falência politica das direcções das organizações tradicionais dos trabalhadores.
Primeiro a traição social-democrata à revolução de 1918.
Depois as fraquezas da direcção do KPD até 1923, a sua estalinização progressiva, o sectarismo suicida a partir de 1929 priorizando os ataques ao SPD e por fim a traição pura e simples com a recusa de combater o ascenso de Hitler.
As camadas pequeno burguesas arruinadas que numa primeira fase olhavam à esquerda para a solução da sua situação foram progressivamente, na ausência de uma resposta clara à esquerda, sendo alienadas e entregues à demagogia e à força dos Nazis.
14. A incapacidade de à esquerda ter sido dada uma saída socialista para a crise, possibilitou a "saída" capitalista para essa mesma crise - o braço militar do nazismo, financiado pelos grandes capitalistas alemães, destruindo todas as organizações e conquistas dos trabalhadores.
15. A crise do sistema capitalista no seu conjunto só seria resolvida mais tarde (temporariamente) com a II Guerra Mundial e com a destruição massiva de forças produtivas e os consequentes custos inimagináveis para a humanidade.
16. Estamos neste momento vivendo um período histórico semelhante a esse da crise entre as duas Guerras.
Olá Catarina.
Olá Catarina.
Dei algum tempo, o suficiente para ver acalmar os ânimos, para escrever sobre este assunto, pois a minha opinião não acompanha as manifestações desenfreadas e pouco imparciais da maioria.
Entretanto, antes de fazê-lo, resolvi dar uma vista de olhos pela net para ver como andam as coisas, no que diz respeito a este assunto e, no primeiro clic, vim aqui parar. Foi com muito agrado que encontrei todo um texto que subscrevo na íntegra.
Assim, ao invés de escrever um meu, com a sua permissão, postarei o link desta página no meu facebook.
Grato por tê-la conhecido,
Alex
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