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A questão Humpty Dumpty

Um líder improvável como Biden conseguiu o maior sucesso do século da política externa norte-americana, mas pode perder as próximas eleições e abrir as portas ao regresso de Trump.

Charles Dodgson, aliás, Lewis Carroll, com a sabedoria que lhe é reconhecida, escolheu os personagens mais implausíveis para resumir a ciência política: Humpty Dumpty, discutindo com Alice se se pode dar discricionariamente um novo sentido a qualquer palavra, concluiu que “a questão é saber quem manda, é tudo”. É mesmo tudo.

A Cimeira da NATO em Madrid comprovou a teoria Humpty Dumpty, já depois de uma miríade de reuniões que, nos últimos meses, recuperou o peso da Aliança, esboroado após o desastre de Cabul. O que importa é quem manda e, mais do que tudo, quem reduz os outros a pensar no mesmo quadro mental. Esse é o sucesso da submissão da Europa, enterrado o sonho de uma multipolaridade energética e de uma voz própria: todos os dirigentes europeus se curvam à liderança de Washington, a NATO alargou a sua frente militar na fronteira russa, algo impensável durante a Guerra Fria, e determina os gastos dos Estados. É uma situação paradoxal, pois raramente essa liderança foi tão frágil dentro de portas, o que prova que as pessoas contam menos do que os sistemas de poder: um líder improvável como Biden conseguiu o maior sucesso do século da política externa norte-americana, mas pode perder as próximas eleições e abrir as portas ao regresso de Trump.

O aumento extraordinário do orçamento militar alemão ultrapassa só por si o valor total do orçamento militar russo do ano passado

Como não podia deixar de ser, quem manda exige devoção. O triste papel de Sanchez, fisgado numa carreira internacional (onde é que já vimos isto?), resume a Cimeira, ainda que a coreografia seja por ora uma promessa (a nova brigada prometida à Lituânia não sairá da Alemanha, a nova brigada para a Roménia ficará na Polónia e com quartel-general no Kentucky). É questão de tempo, o carro está em marcha, dir-se-á, e é certo, há um novo passo na integração dos exércitos nacionais no dispositivo de comando da NATO. O aumento extraordinário do orçamento militar alemão, um facto inédito desde a Segunda Guerra Mundial — e inscrito na Constituição, uma curiosidade germânica —, ultrapassa só por si o valor total do orçamento militar russo do ano passado, sendo que as maiores potências europeias (Reino Unido, Alemanha, França e Itália) já gastavam neste sector o triplo da Rússia. Mas, como os EUA gastam 12 vezes o orçamento russo e lideram a Aliança, a sua ordem é que conta. Ora, como se soube em Madrid, para a Casa Branca a nova fronteira do século XXI passou para o Pacífico, e as armas apontam-se para a China — o que é a prova de Humpty Dumpty: qualquer palavra pode ser o que quem manda vier a ditar.

Artigo publicado no jornal Expresso a 8 de julho de 2022

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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