As economias ocidentais, que cresceram abruptamente no pós-guerra e criaram um período de uma falsa estabilidade para o norte global, construíram o caminho das desigualdades que nos levou até às crises dos anos 70 e 2008. A falácia neoliberal de que o individualismo tudo pode, que a liberdade do mercado nos dá liberdade para escolher o nosso futuro, está a revelar-se catastrófica para as civilizações de todo o mundo. Os recursos começam a escassear e os modos de produção e de exploração do nosso planeta estão aos poucos a devastar populações e ecossistemas. O custo para a nossa ascensão para uma classe mais abastada é a criação e a manutenção de uns muitos miseráveis que se esfolam para ter uns quantos tostões. Esta é a lei do liberalismo económico no estádio mais avançado de um capitalismo mais resiliente e fulminante.
A Agenda para o desenvolvimento sustentável da ONU 2030 (ODS) propõe diversos objetivos que, no panorama atual, são impensáveis de atingir. Não se deve simplesmente ao facto de a Rússia, no início deste ano, ter decidido iniciar uma guerra em solo ucraniano e a todas as consequências que essa ação desencadeou. Não se deve a esse simples facto porque excluir a essência imperialista desta guerra e todas as outras começadas pelas principais potências económicas mundiais, é também excluir do cenário o próprio imperialismo como estádio superior do sistema capitalista. Como concluiu Lenine, no seu livro O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, a expansão monopolista das nações mais ricas e poderosas tende a aumentar “(…) a exploração de um número cada vez maior de nações pequenas ou fracas (…)”, ao invés de as libertar, como é normalmente proferido pelos países parasitas que promovem invasões.
Os três primeiros objetivos da Agenda para o desenvolvimento sustentável são: “1. Erradicar a pobreza”, “2. Acabar com a fome” e “3. Saúde de qualidade”. Para tal, teria de existir uma redistribuição da riqueza muito mais justa que, de uma perspetiva ocidentalista, é impensável.
Os 10% mais ricos detêm 76% de toda a riqueza mundial. É através destes dados que compreendemos que o problema não se trata de gerar riqueza, pois esta já está criada e bem armazenada nos bolsos dos capitalistas. Percebemos é que a ganância de meia dúzia promove a penúria de milhões. Sabemos também que estes valores tendem a ficar ainda mais desiguais, porque as crises que se avizinham, promovidas pela especulação do mercado, resignam a classe trabalhadora ao trabalho intenso e à desvalorização dos salários pela inflação, perpetuando o enriquecimento das suas fortunas.
Em Portugal, observamos os casos práticos da Galp, da Sonae ou da Jerónimo Martins, a nível mundial, os casos da Tesla de Elon Musk ou do CEO da Berkshire Hathaway, Warren Buffett, que só este ano viram os seus lucros aumentar mais de 70%. É a síndrome de um sistema onde perpetua a acumulação, sem perspetivas de uma redistribuição justa dos frutos do trabalho, que acabariam com a pobreza e a fome. Neste sistema nunca acabaremos com a miséria.
Em relação à saúde (ODS 3), a pandemia do negócio da doença já chegou a Portugal. O permanente desinvestimento do Serviço Nacional de Saúde prevê um reforço do negócio privado, seja por acordos com o Estado ou porque as classes mais altas do país procuram o privado pela insuficiente resposta de um SNS, que carece de salvação. Em Portugal, país que ainda tem um serviço universal, público e tendencialmente gratuito, considerado um marco de resistência desde o 25 de abril, já se começa a ceder à tradicional tendência global da privatização.
O domínio do negócio da doença é característico das sociedades ocidentais que, através da manutenção das epidemias e enfermidades, conserva o inacesso e boicote ao sul global no acesso à saúde. Esta preservação do status-quo alimenta o negócio das grandes farmacêuticas, através do escoamento de stocks de medicamentos para países cronicamente pobres a preços que ao mesmo tempo que sustentam o seu lucro e condicionam o crescimento desses povos. Sendo assim, o ponto 3., à semelhança dos outros pontos anteriores, não é concretizável até 2030 e nunca o será enquanto permanecer a tirania do mercado livre.
O contexto social e cultural de cada país é também esquecido quando se estabelecem comparações entre Estados e se criam índices que colocam as nações em caixotes de países livres e ricos por oposição a autoritários e pobres. Porém, a arrogância cultural dos analistas do PIB oblitera, deliberadamente, que, em países do sul global, conservam-se modos de viver que não estabelecem trocas de capital que entram para a contabilização do PIB, pois prevalecem economias informais. Assim sendo, rotular essas sociedades e comunidades de menos desenvolvidas é, acima de tudo, desonesto, enquanto reflete bem a altivez intelectual e o espírito colonial que nunca desapareceu do seio dos povos ocidentais.
O acordo dos ODS em 2015 ficará para história, mas como um fracasso. Acredito que haverá muito boa vontade na alma de muitos agentes políticos, das mais diversas instituições, pena é essa vontade não ser tanta quanto a das milhões de crianças que morrem à fome todos os dias, ou a vontade dos trabalhadores migrantes que fogem da guerra, ou das mulheres que em muitos países do mundo se veem privadas de ser mulheres. Se a vontade deles fosse a nossa, hoje não precisaríamos de ODS, porque cairiam os oligarcas e os milionários, cairiam os acumuladores e exploradores. Restaríamos nós. Por isso, de pouco nos vale que nos preguem sobre desenvolvimento como se fosse uma religião. Na verdade, nem toda a humanidade é gananciosa, há quem só queira uma casa, um trabalho, comida na mesa, poder estudar, poder viver em paz. Eu quero isso tudo, e tudo isso parece tanto apesar de tão pouco. Termino com Zé Mário, que numa só frase, da tão comovente e impetuosa FMI, unificou o nosso grito de revolta e entoou “Só quero ser feliz, porra!”.