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Quem tem medo de uma verdadeira comissão de inquérito?

Se houvesse uma Comissão de Investigação séria [ao ataque militar de Israel à Flotilha da Liberdade, que transportava ajuda humanitária para Gaza] em Israel (em vez de pretextos patéticos para impedir qualquer investigação), eis algumas das questões que teriam de ser respondidas:

1. Qual o verdadeiro objectivo do bloqueio da Faixa de Gaza?

2. Se o bloqueio visa a evitar que entrem armas na Faixa, por que só são autorizados a entrar em Gaza 100 itens (contra os mais de 12 mil que se encontram à venda em qualquer supermercado de porte médio em Israel)?

3. Por que não podem entrar em Gaza chocolate, brinquedos, lápis, canetas e papel, vários tipos de frutas e legumes (e por que canela entra, e coentros não entram)?

4. Que relação há entre (i) a decisão de proibir a importação de materiais de construção, para reparos e reconstrução dos milhares de prédios destruídos ou danificados na Operação Chumbo Derretido, e (ii) o argumento de que os materiais poderiam ser usados para construir abrigos para o Hamas –, se todos sabem que material mais do que suficiente para essa finalidade chega regularmente à Faixa de Gaza, pelos túneis?

5. O verdadeiro objectivo do bloqueio é transformar em inferno a vida de 1,5 milhões de seres humanos, na esperança de que se levantem e deponham o governo do Hamas?

6. Dado que isso ainda não aconteceu, e – ao contrário – o Hamas vem-se fortalecendo ao longo dos três anos do bloqueio, o governo israelita nunca considerou a possibilidade de alterar a política do bloqueio?

7. O bloqueio foi imposto para forçar a libertação do soldado Gilad Shalit, capturado pelo Hamas?

8. O bloqueio contribuiu de algum modo, para esse objectivo? Ou tem sido contraproducente?

9. Por que o governo israelita se recusa a trocar Shalit por centenas de prisioneiros presos em Israel, dado que o Hamas aceita a troca?

10. É verdade que o governo dos EUA vetou completamente a troca de prisioneiros, sob o argumento de que isso fortaleceria o Hamas?

11. Há qualquer tipo de discussão, no governo de Israel, que autorize a esperar que Israel algum dia cumpra os compromissos que assumiu em Oslo – de permitir e estimular o desenvolvimento do porto de Gaza –, de modo a que se impeça o contrabando de armas?

12. Por que o governo israelita declara repetidas vezes que as águas territoriais da Faixa de Gaza seriam parte das águas territoriais de Israel, e que navios que por ali naveguem estariam “agredindo a soberania de Israel”, se se sabe que isso não é verdade, uma vez que a Faixa de Gaza não foi nunca anexada a Israel e que Israel, sim, anunciou oficialmente, em 2006, que “se separara” da Faixa?

13. Por que os activistas pacifistas sequestrados em alto mar, e que jamais tiveram qualquer intenção ou desejo de aportar em Israel, foram acusados, pelo Procurador-Geral de Israel, de “tentar entrar ilegalmente em Israel”? Por que o Estado de Israel pediu que recebessem penas mais longas, por “tentativa de entrar ilegalmente em Israel”?

14. Quem é responsável por essas acusações ilegais e contraditórias, se, num momento, o governo de Israel diz que “se separou oficialmente da Faixa de Gaza” e que “a ocupação terminou” – e, no momento seguinte, alega ter direito de defender a “soberania do Estado de Israel” sobre as águas do litoral da Faixa?

Sobre a decisão de atacar a Flotilha

15. Quando os serviços de inteligência israelitas ouviram falar, pela primeira vez, dos preparativos para organizar a Flotilha? (Há evidências filmadas.)

16. Quando esses informes chegaram ao gabinete do primeiro-ministro, do ministro da Defesa, do Gabinete de governo, do “Comité dos Sete” (encarregado das questões de defesa) e do comandante geral do Exército?

17. O que decidiram esses funcionários e essas instituições?

18. Que tipo de informações dos serviços de informações chegaram a cada um deles?

19. Quando, quem tomou e como foi tomada a decisão de deter a flotilha por ataque militar armado?

20. É verdade que a secretária do Gabinete de governo Tzvi Hauser alertou para as graves consequências daquela acção e aconselhou a deixar que a flotilha atracasse em Gaza?

21. Houve outras vozes que tenham aconselhado nessa mesma direcção?

22. O ministro dos Negócios Exteriores participou de todas as discussões?

23. Se participou, o ministro alertou sobre o impacto daquela acção nas relações entre Israel e Turquia e outros países?

24. À luz da evidência de que, antes do incidente, o governo turco informara ao ministério de Negócios Estrangeiros de Israel que a flotilha fora organizada por entidade privada não controlada pelo governo e não violava qualquer lei turca – o ministro Lieberman considerou a possibilidade de fazer contacto com a organização da Flotilha, para tentar algum acordo e evitar a violência?

25. Deu-se a devida consideração à possibilidade de deter a Flotilha em águas territoriais, inspeccionar a carga e deixá-la passar?

26. Alguém, nalgum momento, considerou o impacto do ataque à Flotilha, na opinião pública internacional?

27. Alguém, em algum momento, considerou o impacto do ataque à Flotilha, nas relações entre Israel e os EUA?

28. Alguém, nalgum momento, considerou a possibilidade de o ataque à Flotilha fortalecer o Hamas?

29. Alguém, em algum momento, considerou a evidência de que o ataque à Flotilha pode vir a tornar ainda mais difícil manter o bloqueio de Israel a Gaza?

Sobre o planeamento do ataque à Flotilha

30. Que tipo de informação estava à disposição dos que planearam o ataque à Flotilha? (Há provas gravadas.)

31. Alguém, nalgum momento, considerou a evidência de que o grupo de activistas que viajava nessa Flotilha é diferente do que viajou noutros barcos de protesto, porque dessa vez havia o componente turco?

32. Alguém, nalgum momento, considerou que, diferentes dos pacifistas europeus, que acreditam na resistência pacífica, os activistas turcos poderiam adoptar meios de resistência activa contra soldados que assaltassem o barco turco?

33. Consideraram-se vias alternativas de acção, como bloquear o avanço da Flotilha com barcos não armados?

34. Nesse caso, se outras alternativas foram consideradas, por que foram rejeitadas?

35. Quem realmente coordenou o planeamento do ataque à Flotilha – o comandante geral do Exército ou o comandante geral da Marinha?

36. Se o responsável pela decisão de atacar militarmente a Flotilha foi o comandante da Marinha, a decisão foi aprovada pelo comandante geral do Exército, pelo ministro da Defesa e pelo primeiro-ministro?

37. Como se distribuíam as responsabilidades entre todos esses, no processo de tomada de decisão que levou ao ataque à Flotilha?

38. Por que a acção aconteceu fora das águas territoriais de Israel e da Faixa de Gaza?

39. Por que a acção foi executada em plena noite, na escuridão?

40. Alguém da Marinha israelita fez qualquer objecção à ideia de soldados descerem por cordas, de um helicóptero, sobre o convés do barco “Mavi Marmara”?

41. Durante as discussões, alguém chamou a atenção para a semelhança entre a operação que estava a ser planeada e a acção dos britânicos contra o navio “Exodus 1947” – que terminou em desastre político para os britânicos?

Sobre o ataque ao barco

42. Por que todas as comunicações do barco com o mundo foram cortadas, durante a operação, se nada havia a esconder?

43. Alguém protestou, em defesa dos soldados israelitas, de que poderiam estar a ser mandados para uma armadilha mortal?

44. Alguém, nalgum momento, considerou a evidência de que os soldados israelitas permaneceriam, por vários minutos críticos, em perigosa posição de inferioridade e completamente expostos?

45. Quando, exactamente, os soldados israelitas começaram a disparar com munição real?

46. Qual dos soldados atirou primeiro?

47. O tiroteio – todo ou parte dele – pode ser legalmente justificado?

48. É verdade, como disseram os passageiros, que os soldados começaram a disparar ainda de dentro dos helicópteros?

49. É verdade que o tiroteio continuou mesmo depois de o capitão do barco e os activistas terem repetido pelos altifalantes que o barco se rendia, e depois, também, de terem levantado bandeiras brancas?

50. É verdade que cinco dos nove mortos receberam tiros pelas costas, o que prova que tentavam afastar-se e, portanto, não eram ameaça à vida dos soldados?

51. Por que Ibrahim Bilgen, 61 anos, cinco filhos, candidato a presidente da câmara da sua cidade natal, foi identificado como terrorista e foi morto?

52. Por que Cetin Topcoglu, 54 anos, treinador da equipe nacional de taekwondo da Turquia, que viajava com a esposa, foi identificado como terrorista e foi morto?

53. Por que Cevdet Kiliclar, 38 anos, jornalista, foi identificado como terrorista e foi morto?

54. Por que Ali Haydar Bengi, quatro filhos, professor de literatura formado pela Escola al-Azhar do Cairo, foi identificado como terrorista e foi morto?

55. Por que Necdet Yaldirim, 32 anos, uma filha; Fahri Yaldiz, 43 anos, quatro filhos; Cengiz Songur, 47 anos, sete filhos; e Cengiz Akyuz, 41 anos, três filhos, foram identificados como terroristas e foram mortos?

56. É mentira que os activistas tomaram a pistola de um soldado e dispararam sobre ele, como disse o Exército de Israel? Ou é verdade que os activistas desarmaram vários soldados e jogaram várias armas ao mar, sem usá-las, como disseram vários activistas?

57. É verdade, como disse Jamal Elshayyal, jornalista e cidadão britânico, que os soldados negaram socorro a turcos feridos, durante três horas, período em que vários deles morreram?

58. É verdade, como disse o mesmo jornalista, que foi algemado com as mãos às costas e forçado a permanecer ajoelhado por três horas, exposto ao sol escaldante, sem água, e que foi impedido de ir ao banheiro e ouviu “mije nas calças”? É verdade que teve o seu passaporte britânico confiscado e jamais devolvido? É verdade que lhe foram roubados e jamais devolvidos um computador laptop, três telemóveis e 1.500 dólares em dinheiro?

59. É verdade que o exército de Israel manteve todos os passageiros sequestrados e presos em local ignorado, por 48 horas; que confiscou todas as câmaras, filmes e telemóveis dos jornalistas a bordo, para impedir que circulasse qualquer informação que gerasse dúvidas sobre a versão dos factos divulgada pelo exército de Israel?

60. Esse é procedimento padrão nesses casos, para manter o primeiro-ministro (ou seu representante e porta-voz, Moshe Yaalon, dessa vez) em cena, durante qualquer operação. O mesmo procedimento foi adoptado noutros casos, como na operação Entebbe e na abordagem do navio “Karin A”; foi adoptado também no caso do ataque à Flotilha?

Sobre o comportamento do porta-voz do exército de Israel

61. É verdade que durante as primeiras horas o porta-voz do exército de Israel distribuiu uma série de informes fictícios, para justificar o iminente ataque à Flotilha aos olhos dos israelitas e do público internacional?

62. Os poucos minutos de filme que têm sido exibidos centenas de vezes pelas televisões em Israel, desde o dia do ataque até hoje, são versões cuidadosamente editadas, para que não se veja o que aconteceu imediatamente antes e imediatamente depois do ataque?

63. O que há de verdade na declaração de que soldados teriam sido presos por activistas no interior do barco e que estariam sob risco de “linchamento”, quando há fotos que mostram claramente que os soldados permaneceram cercados por tempo considerável por dúzias de activistas que sequer lhes tocavam, e que um médico que viajava no barco socorreu vários soldados?

64. Que provas há de que a ONG turca IHH teria conexões com a al-Qaeda?

65. Que bases há para a informação – jamais confirmada até agora – repetida incontáveis vezes de que a ONG turca IHH seria “organização terrorista”?

66. Por que se diz que a ONG IHH estaria a agir sob ordens do primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan, se se sabe que essa ONG, de fato, é aliada próxima de um partido da oposição a Erdogan?

67. Se a ONG IHH seria organização terrorista conhecida dos serviços de informações de Israel, por que a operação não foi abortada quando ainda estava sendo planeada?

68. Por que o governo de Israel não denunciou o plano da ONG IHH, antes do ataque aos barcos?

69. Por que, na propaganda oficial, a palavra “shahid”, em declarações de um dos activistas, foi traduzida pelo governo de Israel – com evidente má fé – como se o activista tivesse dito que desejava “matar e morrer”? (A palavra “shahid”, como todos sabem em Israel, designa alguém que se sacrifica para manifestar sua fé em Deus, exactamente como qualquer mártir cristão ou judeu.)

70. De onde brotou a mentira segundo a qual os turcos teriam gritado “Voltem para Auschwitz”?

71. Por que nenhum médico israelita foi convocado para informar os israelitas, imediatamente, sobre os ferimentos dos soldados feridos, depois de os anúncios oficiais de que pelo menos um soldado fora ferido à bala?

72. Quem inventou a história de que haveria armas nos barcos, e que teriam sido jogadas ao mar?

73. Quem inventou a história de que os activistas transportariam armas de fogo – quando, na exibição organizada pelo próprio porta-voz do exército de Israel, só se viam objectos encontráveis em todos os barcos do mundo, sobretudo em barco equipado para transportar 1.000 passageiros (binóculos, instrumentos para primeiros-socorros, canivetes, pedaços de metal, além de uma adaga iemenita decorativa e facas de cozinha)?

74. Todos aqueles itens – associados à incansável repetição da palavra “terroristas” e à censura de qualquer tipo de informação diferente – não configuram operação de lavagem cerebral?

Sobre a investigação

75. Por que o governo de Israel se recusa a participar de comissão internacional de investigação composta de investigadores neutros, que o governo de Israel aceite?

76. Por que o primeiro-ministro e o ministro da Defesa de Israel anunciaram que estão dispostos a testemunhar – mas não respondem às nossas perguntas?

77. De onde vem o argumento de que soldados não poderiam ser chamados a testemunhar – quando, noutras investigações, sempre houve altos oficiais, oficiais de baixo escalão e recrutas interrogados?

78. Por que o governo de Israel se recusa a nomear uma Comissão Oficial de Inquérito, nos termos da lei israelita aprovada pelo Parlamento em 1966 exactamente para esses casos, como, por exemplo, as comissões nomeadas depois da guerra do Yom Kippur, depois do massacre de Sabra e Shatila, depois do atentado à Mesquita al-Aqsa (um australiano louco incendiou o púlpito da mesquita), e também para investigar denúncias de corrupção nos desportos e o assassinato do líder sionista Chaim Arlosoroff (e quase 50 anos depois do crime!)?

79. O governo de Israel terá algo a temer do trabalho de uma Comissão de Inquérito, cujos membros são indicados pelo presidente do Suprema Tribunal, e que tem poder para convocar e interrogar testemunhas, para exigir que se exibam provas e para determinar responsabilidades pessoais em erros e crimes?

80. Por que, agora, o governo de Israel decidiu nomear um comité patético, sem poder legal para coisa alguma, sem qualquer credibilidade, nem em Israel nem em lugar algum?

E, finalmente, a pergunta mãe de todas as perguntas:

81. O que o governo e os militares israelitas tentam esconder?

O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Who is Afraid of a real Inquiry

Tradução de Caia Fittipaldi, retirado do blog Vi o Mundo

Sobre o/a autor(a)

Escritor israelita, jornalista, fundador do movimento de defesa da paz Gush Shalom.
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