Está aqui

Quem quer uma tensão entre a Justiça e a democracia?

Distinguir entre o populismo mediático, a clareza da justiça e a fronteira da exposição dos próprios magistrados torna-se um problema difícil.

A Justiça e a expressão da opinião pública como lugar da transparência não são só distintas pelos ritmos ou formalidades próprias de cada uma. Têm culturas separadas, o que podia não ser o problema, e são formas de poder, o que cria inquietude. A sua autonomia será sempre tensa. Mas deve ter-se em conta que as colisões é que são duplamente perigosas: para a Justiça, por que a deixa vulnerável se suspeita, e para a democracia, que precisa de confiança. O efeito das deambulações vingativas do juiz Neto de Moura ao longo do Carnaval constitui por isso um pesadelo e não só para ele próprio.

Ao desencadear uma tempestade anunciando que ia processar pessoas que o criticaram, o juiz Neto de Moura (fingindo, aliás, que é a vontade do advogado e que não tem nada que ver com isso), deveria ter compreendido que, numa sociedade de comunicação tão líquida, a pior das condenações é ser alvo de chacota. Para ele, tudo é mau: mesmo enfraquecido pela censura dos seus pares, decidiu-se pela perseguição a quem contraria as suas espantosas sentenças; convoca o tribunal, que ele próprio amesquinhou por particularismos religiosos ou outros; escolhe como advogado alguém cuja exuberante vulnerabilidade no mesmo terreno do menosprezo pelas mulheres foi notada, abrindo a via para as teses de que prosseguem uma causa; e, pior do que tudo, torna-se ridículo, o que não convém mesmo nada a quem veste uma toga.

O ridículo não mata mas magoa

As consequências desse fim de semana alucinante de Neto de Moura vão no entanto muito além destes tons inevitavelmente carnavalescos, o que a Relação do Porto finalmente percebeu ao transferir o juiz, retirando-o da tutela de casos de violência doméstica.

A primeira consequência é um efeito de aglomeração de todas as queixas. Com os seus acórdãos, Neto de Moura já tinha atingido a credibilidade da Justiça. Mas nada disso deixava prever que viria ameaçar a liberdade de opinião e, por isso, colocar-se no centro de uma tormenta crescente. Ele escolheu, portanto, personalizar em si próprio todas as frustrações com a Justiça, todas as zangas das mulheres maltratadas, todos os temores de quem entra num tribunal. Até se dirá que foi traído pelo seu próprio conceito de um tribunal que fala de si próprio a partir do lugar da autoridade, ou até se pode notar que erros dos tribunais de primeira instância podem limitar o âmbito de deliberação da segunda instância. Mas o que nunca se pode aceitar é que os preconceitos de um juiz contra mulheres possam influenciar a decisão do tribunal. Assim, do primeiro ao último dia deste escândalo, Neto de Moura enterrou-se num percurso de que parece não querer nem redimir-se nem proteger-se e que agravou quando o advogado se lança num exercício de cálculo de indemnizações apetitosas.

A criatura mediática vira-se contra o criador

A segunda consequência, e essa exige uma reflexão de fundo, é o custo imenso da inevitável mediatização da Justiça. É conveniente lembrar quem iniciou este processo, que em Portugal era até então muito contido, inaugurado por um juiz que convocou os jornalistas para se fazer filmar num elevador do Parlamento a ir pedir o levantamento de imunidade de um deputado que viria a ser acusado de pedofilia (e depois inocentado). Depois vieram outras fontes de autoridades judiciárias, que criaram ligações privilegiadas com alguns jornais para a indústria de fugas ao segredo de justiça, com divulgação de transcrições de escutas ou vídeos de interrogatórios, sempre para ferozes sentenças preliminares executando os arguidos ou acusados. Houve mesmo uma assessora de imprensa de um procurador-geral da República que o apontou como a fonte principal de algumas das mentiras mais populares num jornal de escândalos. O jogo da informação pública foi uma saborosa forma de poder até ao dia tremendo em que a sua roda começou a atropelar juízes e passou a ser normal o que é normal, o escrutínio público do exercício da justiça.

Distinguir agora entre um obscuro populismo mediático, a clareza da justiça como parte da vida democrática e a fronteira da exposição dos próprios magistrados torna-se um problema cada vez mais difícil.

Justiça e política

Finalmente, a terceira consequência deste frenesim carnavalesco de Neto de Moura é que no imediato favoreceu quem queria prejudicar. As manifestações deste 8 de março ganharam mais dimensão por se tornarem a voz das vítimas e podem registar o impulso dado pelo juiz, que mostrou que havia razões profundíssimas para a sua indignação e até para a vontade de protegerem o direito de opinião. Também um dia saberemos se começa aqui uma carreira política: na Andaluzia, foi por ofensas menos graves que começou o percurso do chefe local do Voxx, um juiz que fora suspenso pelo seu preconceito contra os direitos maternais e depois se dedicou à extrema-direita. Haverá quem se lembre disso, embora até agora os partidos de direita tenham preferido um prudente silêncio.

Por tudo isto, agora importa destacar a vítima que não tem tido defesa: essa é a justiça, que deve ser salvaguardada destas vagas de confusão e degradação que foram desencadeadas por Neto de Moura, muito além do imaginável. Salvemos os tribunais, onde as mulheres devem saber que passam a poder entrar para encontrar o mesmo respeito devido a qualquer pessoa e a aplicação da lei que as protege da violência doméstica e de género.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 9 de junho de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
(...)