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Quando os viseenses que apoiaram Otelo foram agredidos por “jagunços” de direita

Não foi só por ser um símbolo do 25 de Abril que a direita ainda não parou de enlamear a memória de Otelo. Foi também porque foi símbolo do “25 de Abril do Povo” que acreditou no Poder Popular cantado por Zeca Afonso, José Mário Branco, Fausto, Sérgio Godinho e outros.

Em plena campanha para as eleições presidenciais de 1976, a 16 de Junho, alguns apoiantes de Viseu do candidato Otelo Saraiva de Carvalho foram ao encontro da comitiva, de que fazia parte Zeca Afonso, que vinha em direcção a Lamego, estando previsto passar por Viseu a caminho de Nelas, onde a UDP, um dos partidos apoiantes, tinha grande influência entre os mineiros da Urgeiriça e os operários dos Fornos Eléctricos de Canas de Senhorim. Em Lamego foram atacados à pedrada e a tiro. Um dos agressores foi apanhado e entregue à polícia. Em Castro Daire, Otelo teve uma boa recepção. Já no concelho de Viseu, de regresso, o médico Júlio Barbosa (conhecido em Viseu e Lamego), na altura militante da UDP, foi alvejado, tendo-se alojado uma bala no seu Citröen Dyane. Outro militante da UDP, na altura, Carlos Seixas, conhecido desde há anos por dirigir o Festival de Músicas do Mundo de Sines, relembrou no Facebook este episódio lamentável, a propósito da morte de Otelo.

Desconhecendo que a comitiva decidira mudar de rumo, dado o atraso provocado na agenda, seguindo por São Pedro do Sul em direcção a Aveiro, onde à noite haveria um comício, cerca de duas dezenas de apoiantes de Otelo permaneciam junto à estátua de Viriato, na Cava. Aí foram provocados e atacados por mais de uma centena de arruaceiros, incluindo militantes do PSD e do CDS, à mistura com operacionais do ELP, uma das organizações terroristas que semeou o terror bombista, matando pessoas de esquerda e queimando carros, casas e sedes de partidos, mesmo depois do golpe de direita do 25 de Novembro, chefiado por Eanes. Um desses agressores de direita chegou a chefe de pessoal auxiliar de uma das escolas secundárias de Viseu, onde, por sinal, uma década mais tarde, voltaram a ser afixados nas paredes da reprografia (onde os professores tinham de ir buscar as cópias dos testes) cartazes do tempo da ditadura, com citações de Marcelo Caetano, o sucessor de Salazar.

Otelo teve 16,5% dos votos, ficando à frente do almirante Pinheiro de Azevedo (14,3%) e do candidato do PCP, Octávio Pato (7,59%), apesar de apenas apoiado pela UDP, o PRP, o MES e a FSP. Uma percentagem significativa do povo de esquerda e anti-fascista queria um amigo na presidência, o que assustou a direita e os saudosistas da ditadura e da república colonialista. Ramalho Eanes, apoiado por PS, PPD, CDS e MRPP, teve 61,5%.

António Costa, ao negar luto nacional a Otelo, mostrou mais uma vez que está refém do presidente Marcelo. A desculpa da não discriminação de outros militares de Abril já falecidos, não pega. Como reconheceu o coronel Sousa e Castro, “todos os outros foram meros executantes”, embora isso não diminua a sua heroicidade. Otelo comandou sozinho as operações do 25 de Abril. Mas não foi só por ser um símbolo do 25 de Abril que a direita ainda não parou de enlamear a memória de Otelo, desde a notícia da sua morte. É que Otelo foi um símbolo da revolução popular que se seguiu ao golpe militar do 25 de Abril. Ele foi um símbolo do “25 de Abril do Povo” que acreditou no Poder Popular cantado por Zeca Afonso, José Mário Branco, Fausto, Sérgio Godinho e outros. O povo que exigia “A paz, o pão, habitação, saúde, educação”. O povo que sabia que “só há liberdade a sério quando houver/ liberdade de pensar e de decidir/ e quando pertencer ao povo o que o povo produzir”, como na canção do Sérgio. O povo que construiu a democracia que temos hoje, ao se auto-organizar em comissões de moradores, de trabalhadores, de soldados e marinheiros e em sindicatos livres; que exigiu que na Constituição da República Portuguesa ficasse lavrada “a decisão do povo português de (…) abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre,mais justo e mais fraterno”. Formulação que se mantém até hoje na Constituição, aprovada em 1976 pelo PS, PPD, PCP e UDP. Só o CDS votou contra.

É preciso recordar que a amnistia concedida aos condenados no processo das FP-25, aprovada pela Assembleia da República e promulgada por Mário Soares, em 1996, apenas cobria os crimes de cariz político, ficando os crimes de sangue sujeitos a julgamento. E cito o filho de Otelo: “Ao contrário do que se diz, o julgamento das FP-25 terminou no dia 7 de Abril de 2001, no Tribunal da Boa Hora, em Lisboa. Otelo foi absolvido no processo pelo colectivo de juízes da 3ª Vara Criminal

da Boa Hora. Talvez um dia, os cobardes que se aproveitaram dele e da sua imagem para serem amnistiados, sejam “homenzinhos” e digam a verdade. Que tirem o capuz”. O filho de Otelo confirma ainda o que o pai já tinha afirmado numa entrevista: “O jovem oficial Otelo, reconhecido e amado por todos os seus soldados, nunca usou balas nas suas armas durante as três comissões em África. O major comandante revolucionário “Óscar” exigiu que não houvesse tiros no 25 de Abril, revolução exemplar para todo o Mundo” [Só a PIDE é que fez 4 mortos]. “O general Otelo que tinha a maioria do poder militar em Portugal, retirou-se e foi para casa em 25 de Novembro, e evitou uma guerra civil. Nas suas palavras: «A minha responsabilidade nos atentados terroristas das FP25 é zero! Nunca mandei matar ninguém. Tenho horror a qualquer assassínio. (…) E, no entanto, tenho este rótulo que me é dado, sobretudo pela gente de direita»”.

E é esta gente de direita que achou bem conceder ao General Spínola dois dias de luto nacional, apesar de ter sido presidente da maior organização terrorista que já houve em Portugal (tirando a PIDE), como foi o MDLP, responsável por mais de meio milhar de acções violentas, com dezenas de assassinatos de militantes de esquerda, como o de Padre Max e Maria de Lurdes, candidatos da UDP em Vila Real); sedes do PCP, MDP, UDP, LCI incendiadas; casas, lojas, livrarias e tipografias, e carros destruídos à bomba, como o do empresário de Viseu, Armando Mões. Ainda em Viseu, várias lojas de comerciantes foram marcadas a tinta, com uma foice e martelo, como os nazis faziam com a estrela de David para denunciar os judeus. Foi o caso do saudoso latoeiro Claudino, com oficina nas Escadinhas da Sé. O distrito de Viseu foi onde houve mais casos de violência, logo a seguir a Porto, Lisboa e Braga.

O julgamento da rede bombista foi coberto pelo Diário de Lisboa que publicou, em 14.04.1977, o depoimento de Ramiro Moreira, uma dos principais operacionais do MDLP. Refere as suas ligações ao PPD, ao arcebispo de Braga e ao cónego Melo. Sá Carneiro, preocupado com o envolvimento de militantes do PPD nos atentados, obrigou Ramiro Moreira a entregar o cartão do partido.

Também o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, apelou à Igreja para abandonar a sua cumplicidade com o antigo regime, de que deveria pedir desculpas.

Ficaram também claras as ligações da rede bombista do MDLP e do ELP ao PPD e ao CDS. O jornalista Miguel Carvalho, autor do livro “Quando Portugal Ardeu”, refere, numa entrevista ao “A Voz do Operário”, de Julho-Agosto de 2017, que “o grau de cumplicidade que o PS teve com os objectivos da rede bombista foi maior do que se imagina. Havia ligações de elementos da segurança do partido a vários setores da rede bombista. Houve reuniões do PS com o MDLP. Um dos promotores da célebre manifestação da Igreja Católica em Braga, em agosto de 1975, que acaba depois como assalto à sede do PCP, foi o líder distrital do PS da altura.”

Quanto a violência, estamos conversados.

Honra ao comandante do 25 de Abril!

Obrigado Otelo!

Sobre o/a autor(a)

Ativista associativo na defesa dos Direitos Humanos. Militante do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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