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Quando os senhores são genocidas

O chamado Estado Livre do Congo era então propriedade privada do rei Leopoldo II da Bélgica, que durante 21 anos explorou os seus recursos de forma implacável, em particular com o trabalho forçado na extração de borracha para as prometedoras indústrias do novo século.

Há um triângulo entre o filme “Apocalypse Now” (1979), de Francis Coppola, o livro em que se inspira, “O Coração das Trevas” (1902), de Joseph Conrad, e outro que volta ao mesmo cenário de barbárie, “O Sonho do Celta” (2010), de Vargas Llosa, que conta a história da história. Coppola filmou a expedição que sobe o rio vietnamita para matar Kurz, um oficial escondido na selva; Conrad, a partir da sua própria experiência como capitão de navio de transporte de marfim no rio Congo, tinha contado a busca por Kurz, um dos responsáveis pela empresa exploradora e que se perdera algures a montante. Ao entrar “na boca do grande rio”, o capitão Charles Marlow abandona a comodidade das aparências, em que se vive sem remorso a riqueza colonial. “Antes do Congo, eu era só um animal”, diz o escritor, que depois descobriu a imensidão do território do horror (o seu livro foi décadas depois criticado por despersonalizar a população africana, a vítima que fica silenciosa). Não há guerra, não há deus, não há humanidade nessa selva, só há crueldade sem limite. A industrialização da morte foi um êxito da modernidade, quando os cavalheiros enriqueceram sobre pilhas de escravos.

O chamado Estado Livre do Congo era então propriedade privada do rei Leopoldo II da Bélgica, que durante 21 anos explorou os seus recursos de forma implacável, em particular com o trabalho forçado na extração de borracha para as prometedoras indústrias do novo século. A chacina reduziu a população a metade, usando os métodos que o nazismo depois se limitaria a reproduzir. Será, porventura, dos casos mais bem-sucedidos de rápido genocídio de uma população, e o relatório de 1904 de Roger Casement, irlandês e diplomata ao serviço do Reino Unido, que serve de mote para o livro de Vargas Llosa, foi das primeiras provas dessa violência organizada pelo rei belga. O que aqui havia de novo não era a destruição, a escravatura ou sequer a desumanização das vítimas, era simplesmente a aceleração da ganância. Os senhores tinham pressa.

A ditadura portuguesa manteve a legalidade do trabalho forçado até 1962.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 28 de maio de 221

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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