Em 2016 António Costa estabeleceu um objetivo: “vamos continuar a trabalhar para daqui a um ano podermos dizer que deixou de haver portugueses sem acesso a médico de família”. No entanto, o ano de 2017 passou e o objetivo ficou longe de estar cumprido: continuava a existir 710 mil utentes a descoberto nos cuidados de saúde primários. Essa legislatura (2015-2019) haveria de terminar com cerca de 650 mil utentes nessa situação, apesar de tudo bem longe do valor de 1,2 milhões que tinha sido atingido em 2015.
Em 2019 o PS insiste com o objetivo no programa de Governo que apresenta à Assembleia da República. Nele podia ler-se que o Governo iria “garantir uma equipa de saúde familiar a todos os portugueses”. Falhou redondamente este objetivo. Se em outubro de 2019 eram 654 mil os utentes sem equipa de saúde familiar, em outubro de 2021 esse número ia já a caminho do 1,1 milhão. Quase o dobro em apenas dois anos.
O PS constrói então uma narrativa justificativa em torno de dois pontos: a elevada aposentação de profissionais, em particular médicos de família, e o crescimento do número de utentes. É uma narrativa incompleta que procura empurrar para utentes e profissionais as culpas do descalabro, ilibando o Governo quando ele é que tinha as ferramentas políticas para fazer o contrário do que fez.
Vejamos: o número de utentes inscritos em Cuidados de Saúde Primários cresceu, neste período de outubro de 2019 a outubro de 2021, de 10,186 milhões para 10,451 milhões, ou seja, mais 265 mil utentes, o que é curto para explicar o fenómeno de duplicação de utentes sem médico de família. E as aposentações dos médicos de família já eram sabidas e esperadas há muitos anos, pelo que não podem constituir surpresa a não ser que não tenha havido o mínimo de planeamento da força de trabalho do SNS.
Mas há uma outra causa para a degradação da cobertura por equipa de saúde familiar. Ela está omissa na narrativa do PS e não será por acaso. A causa é esta: durante estes últimos anos o PS recusou a concretização de medidas para melhorar carreiras e condições de trabalho dos profissionais de saúde e ao recusar essas medidas promoveu a desertificação de concursos e incentivou a saída de profissionais para o setor privado.
Só nos anos de 2020 e 2021 ficaram por ocupar mais de 400 vagas para contratação de médicos especialistas em medicina geral e familiar para o SNS. O preenchimento dessas vagas permitiria a atribuição de médico e equipa de família a mais 600 mil utentes. A questão que se coloca é por que razão ficaram estas vagas por ocupar? Foi por falta de médicos? Não, os médicos existiam, aliás, tinham acabado a sua formação. Acontece que não quiseram continuar a trabalhar no SNS porque as carreiras e as condições oferecidas não os atraíram. Resultado: foram embora, as vagas ficaram por ocupar, não se contrataram centenas de médicos e em muitos casos não se conseguiu sequer substituir os que se aposentaram.
Agora, no arranque de uma nova legislatura e de um ciclo de maioria absoluta do PS, o programa do novo Governo deixa cair por completo a atribuição de equipa de saúde familiar a todos os utentes.
Em vez disso escreve-se um lamento que soa a desculpa esfarrapada. Diz o novo Governo sobre o assunto: “a aposentação de um número significativo de médicos de família, uma tendência demográfica que ainda se prolongará até 2024, e o aumento de inscritos no SNS, em particular desde o início da pandemia, não permitiram ainda o cumprimento da meta de cobertura de todos os inscritos no SNS por uma equipa de saúde familiar”. E assim se abandonam os utentes sem médico de família e se parece antecipar a deterioração da situação pelo menos até 2024.
Este abandono de um objetivo de sempre é, em si mesmo, um programa de Governo porque, como já vimos, é hoje possível contratar mais profissionais para os cuidados de saúde primários e é hoje possível atribuir mais equipas de saúde familiar a mais utentes. Basta garantir que os concursos para contratação não ficam desertos, basta criar condições para isso. Outras medidas podem ser tomadas, como a criação de condições para ir captar profissionais ao setor privado ou a recaptação para a especialização dos médicos licenciados que em anos anteriores foram impedidos de aceder a especialidade.
Mas para tudo isto é preciso rever carreiras e remunerações, é preciso descongelar as progressões, é preciso avançar com exclusividade e incentivos associados, é preciso, de facto, valorizar profissionais e o Serviço Nacional de Saúde.
Ao deixar cair o objetivo de médico de família para todos os utentes o Governo está a dizer que nenhum destas medidas irá avante. Que a valorização de profissionais e do SNS não será concretizada pelas mãos do PS.
