Promover a negociação coletiva no sentido da valorização do trabalho

porMaria da Paz Lima

03 de maio 2017 - 11:17
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O combate à desigualdade coloca no centro da discussão as formas de promover a negociação coletiva e de promover a sua capacidade como fator de valorização dos salários e de melhoria das condições e direitos do trabalho.

As abordagens predominantes nas análises da OCDE e do FMI, desde os anos 80, contribuíram para a acentuação da transferência dos rendimentos do trabalho para o capital através da moderação salarial e da flexibilização do mercado de trabalho. Esta flexibilização reforçou também o poder patronal em sede da negociação coletiva e permitiu a precarização do emprego e a expansão das práticas de baixos salários. Mais recentemente, as recomendações/exigências de políticas diretamente orientadas para a alteração dos regimes de negociação coletiva potenciaram a fragilização da parte sindical e acentuaram a redução da parte dos rendimentos do trabalho. Nos países sob resgate, as recomendações traduziram-se em intervenções da Troika e atuações dos governos visando a desvalorização interna, como aconteceu em Portugal, com graves efeitos na reconfiguração do regime de negociação coletiva1 e na transferência acentuada de rendimentos do trabalho para o capital2, traduzindo-se num processo de desvalorização do trabalho3.

Enquanto as recentes recomendações do relatório da OCDE de 2017 sobre Portugal4 apontam para a continuação da trajetória de retrocesso social, ao defenderem, no essencial, a continuidade das medidas que o provocaram, outros estudos internacionais enunciam preocupações que apontam a necessidade de uma viragem. É o caso do Global Wage Report5 da OIT que chama a atenção para a crescente desigualdade de rendimentos por via de uma evolução salarial que na maioria dos países não acompanhou os aumentos da produtividade, sendo Portugal um dos países onde se observou uma queda mais acentuada do peso dos rendimentos do trabalho no PIB entre 2003 e 2015, de 60% para 52%. Numa outra dimensão, a da desigualdade salarial, o estudo da OIT defende a importância crucial do papel dos salários mínimos e da negociação coletiva no sentido de reduzir as desigualdades salariais entre empresas e dentro das empresas6.

O combate à desigualdade nestas duas dimensões coloca no centro da discussão as formas de promover a negociação coletiva e de promover a sua capacidade como fator de valorização dos salários e de melhoria das condições e direitos do trabalho. Se a abrangência e inclusividade da negociação coletiva constitui um aspeto crucial do combate à desigualdade – que a extensão das convenções coletivas deve assegurar – a melhoria da qualidade das disposições e normas das convenções coletivas no sentido da valorização do trabalho articula outras condições.

As propostas apresentadas na Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda (Projeto de Lei N.º 163/XIII e Projeto de Lei Nº 234/XIII) e pelo Partido Comunista Português (Projeto Lei Nº 169/XIII e Projeto de Lei n.º 211/XIII) com incidência no quadro legal das relações coletivas de trabalho entram agora em debate, quase três anos depois da saída formal da Troika cujas exigências conduziram a uma profunda degradação da negociação coletiva em Portugal. Formuladas há cerca de um ano atrás, os partidos proponentes seguiram com ponderação os debates entre parceiros sociais nestas matérias e aguardaram a publicação do diagnóstico produzido no Livro Verde das Relações Laborais antes de agendarem a discussão das propostas no parlamento. A centralidade do parlamento e a sua competência para discutir e decidir destas matérias é inquestionável nos termos da Constituição e do quadro jurídico português.

E no entanto, vamos porventura ouvir muito ruido a perturbar esta discussão parlamentar, invocando que esta decorre em simultâneo com a implementação do acordo bipartido suspendendo temporariamente o uso da figura da denúncia das convenções coletivas de trabalho (regime de caducidade) resultante do Compromisso Tripartido para um Acordo de Concertação de Médio Prazo; e que decorre também em simultâneo com a discussão sobre a revisão do regime de extensão das convenções coletivas de trabalho no CPCS.

O que se joga em termos de presente e do futuro do mundo do trabalho em Portugal é, no entanto, demasiado importante e decisivo para ser deixado apenas ao sabor dos interesses imediatos e da relação de forças conjuntural entre atores sindicais e patronais. Não obstante as melhorias do ponto de vista substantivo e formal que possam resultar da discussão que agora se inicia, e das aproximações e compromissos que se venham a definir no parlamento, as propostas do Bloco de Esquerda e do PCP têm inegavelmente um mérito: colocam no centro da discussão a criação das condições para a valorização do trabalho através da negociação coletiva.

As normas propostas nestes projetos de lei podem ter um efeito crucial no reequilíbrio das relações laborais em Portugal, reequilíbrio fundamental para a valorização do trabalho em sede de negociação coletiva: ao defenderem a reposição integral do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador (favor laboratoris) e ao considerar as suas implicações a múltiplos níveis; ao defenderem a sucessão das convenções coletivas com base apenas em decisões bilaterais dos signatários das convenções; e ao propor a revogação das normas sobre a adaptabilidade e banco de horas individual.

Com efeito, as mudanças legais como a reversão do princípio do tratamento mais favorável aos trabalhadores em 2003 e a sua reposição apenas parcial em 2009; a instituição do regime de caducidade unilateral das convenções em 2003, tornando-o operacional em 2009, e reduzindo de forma significativa os prazos da caducidade e sobrevigência dos contratos coletivos de trabalho em 2014, à sombra da Troika; e a individualização das formas de adaptabilidade horária e banco de horas em 2012 retiraram aos sindicatos grande parte da sua capacidade negocial efetiva.

As propostas agora em discussão apresentadas pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP vão bem para além da mera listagem de normas a revogar, sugerindo também novas medidas, por exemplo quanto às implicações múltiplas do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, não só na relação entre lei e convenções coletivas, mas também no domínio da concorrência entre convenções e entre portarias de extensão, prevenindo a degradação do nível de proteção dos trabalhadores por qualquer uma das vias. E propondo que as convenções coletivas possam determinar condições mais favoráveis do que a lei na regulação dos contratos a prazo – uma proposta ambiciosa e potencialmente mobilizadora dos trabalhadores precários.

De modo geral, as propostas representam uma leitura apoiada num balanço sobre normas que estiveram em vigor e cujos efeitos perversos se tornaram crescentemente mais visíveis. São por isso propostas que constituem um bom ponto de partida, tanto no plano dos princípios como no plano prático, no sentido da valorização do trabalho e do reconhecimento dos direitos laborais como componente essencial dos sistemas democráticos. E é por isso que o debate, para além de envolver e acolher os contributos dos atores das relações laborais, deve ser transversal à sociedade portuguesa. O mundo do trabalho faz parte, tem de fazer parte, do mundo da cidadania.


1 Campos Lima, M.P. (2016), “O desmantelamento do regime de negociação coletiva em Portugal, os desafios e as alternativas”, Cadernos do Observatório #8, Observatório sobre Crises e Alternativas. Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

2 Leite, J., Costa, H. A., Silva, M. C. e Almeida, J. R. (2013), “Austeridade, reformas laborais e desvalorização do trabalho”, in Anatomia da Crise: identificar os problemas e construir alternativas, Observatório das Crises e das Alternativas, 108-158. http://www.ces.uc.pt/ficheiros2/files/Relatorio_Anatomia_Crise_final__.pdf

3 Caldas, J. M. (2015), “Desvalorização do trabalho: Do Memorando à prática”, Cadernos do Observatório, 6. Coimbra: Observatório das Crises e Alternativas/Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

4 OECD ( 2017), Labour Market Reforms in Portugal 2011-2015, Paris:OECD. http://www.dgert.msess.pt/wp-content/uploads/2017/01/Relatorio-Labour-market-reforms-in-Portugal-2011-2015.pdf

5 ILO (2017) Global Wage Report – Wage Inequality in the Workplace, Geneva: International Labour Office, ILO. http://www.ilo.org/global/research/global-reports/global-wage-report/2016/lang--en/index.htm

6 Janssen, R. (2017) “The Rise Of The “Super Firms” And Inequality” https://www.socialeurope.eu/2017/02/rise-super-firms-inequality-2/

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Socióloga
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