Jair Bolsonaro vê que o seu futuro passará por "estar preso, ser morto ou a vitória" e pode estar coberto de razão.
É, neste momento, "aquele democrata" que tudo fará para não se sujeitar a eleições, sabendo que - face ao que as sondagens revelam e aos números de impopularidade crescente - as irá perder. Mas o presidente do Brasil nunca coloca a hipótese de ser "perdedor" no futuro próximo e isso diz muito sobre o respeito que tem pela democracia, pela liberdade, assim como sobre o fantasma de um golpe militar que só não ousará tentar porque são muitos, e cada vez mais, os seus opositores. Ontem, apesar disso, para debater a crise constitucional que ele própria provoca e alimenta, envia um avião da frota presidencial a São Paulo para trazer o ex-presidente e golpista Michel Temer a Brasília. Cada vez mais longe de ganhar nas urnas, Bolsonaro tenta conquistar pela mobilização nas ruas e não hesita em extremar a clivagem na sociedade brasileira, conduzindo-a para um ponto sem retorno.
Foi assim aquando da eleição entre Hillary Clinton e Donald Trump, tal como na disputa eleitoral entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro. Apesar dos sinais mais do que evidentes da cultura antidemocrática e perigoso populismo dos que viriam a ganhar nas urnas, muitos - até em Portugal - não conseguiam escolher entre o que consideravam dois males semelhantes. Entretanto, o que se viu nos EUA e o que se vê, agora, no Brasil. Já não são sinais, são factos. Há ainda quem prefira esperar que aconteça um golpe militar, como quem esperou que supremacistas brancos invadissem o Capitólio e apressassem o fim da História. Não é tempo de ignorar ou olhar sem tomar parte.
Bolsonaro põe em causa o sistema judicial e a separação de poderes, ameaça juízes, exige a substituição de Alexandre de Morais (juiz do Supremo Tribunal Federal), incentiva a radicalização nas manifestações de apoio no dia da independência através de afirmações perigosas e incendiárias, faz ameaças golpistas na manifestação, pede ao povo que se arme ("tem de comprar fuzil, povo armado jamais será escravizado") num país que - em três anos - duplicou o número de armas na sociedade civil, granjeia apoio na Polícia Militar que pretende transformar em suas milícias, invoca Deus como o poder maior que o ilumina e mantém no Planalto ("só Deus me tira de lá"), verborreia negacionismo em várias frentes, corresponsável pela morte de quase 600 mil brasileiros pela inacreditável inacção e gestão irresponsável na pandemia, suspeito de envolvimento em esquemas criminosos com a compra de vacinas, suspeito de difamação e incitação ao crime que não hesita em colocar em causa o sistema eleitoral, lançando dúvidas sobre o voto electrónico nas próximas presidenciais, semeando a teoria de fraude eleitoral como Donald Trump ainda hoje alimenta, criador uma "medida provisória" que impede ou dificulta a retirada de "fake news" e "bots" da Internet/redes sociais na antecâmara das manifestações de 7 de Setembro, o futuro ex-presidente do Brasil é mais do que um parágrafo. Será um livro a fechar.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a a 10 de setembro de 2021