Está aqui

Preparemo-nos

Moedas é o principal promotor do que podemos chamar de gig economy, capitalismo de plataformas ou simplesmente de superexploração pretensamente hi-tech. Bate-se por uma Lisboa cuja economia se centre no poder das grandes empresas ditas tecnológicas que dominam as entregas, o TVDE ou o alojamento local.

Ao ritmo que as coisas correm, o assunto a que volto pode parecer já datado. Afinal, já tanta coisa ocorreu nos dias que dele nos separam. A maior manifestação popular dos últimos dez anos, por exemplo. Mas não só.

Nestes dias, soubemos que Carlos Alexandre - juiz-estrela ao estilo Sérgio Moro - aceitou testemunhar em defesa do agente da PSP condenado pela agressão racista a Cláudia Simões (esse que faz parte dos mais de 500 denunciados por práticas racistas nas redes). Sim, a Cláudia Simões que o Tribunal da Relação aceitou julgar por supostas agressões ao seu bárbaro agressor armado. Aliás, neste mesmo intervalo, Magina da Silva, superintendente da PSP que, comentando essa agressão, à época, disse nada de mal ter visto nela, foi reconduzido no cargo. No mesmo breve período em que, sem que causasse espanto mediático, o chefe da bancada municipal do Chega em Lisboa chamou a PSP (que logo o acudiu) a uma Assembleia Municipal para apresentar queixa de um deputado que tinha apontado o racismo desse partido. No mesmo período foi ainda ilibado Nuno Afonso, ex-número dois do Chega, - que mentira num ataque ao Bloco - foi ilibado de difamação.

Mas não é sobre nada disto que aqui escrevo. Não passaram estas de coincidências e só uma mente conspirativa as associaria ao tema deste texto, como se peças de uma ofensiva em curso se tratassem. Escrevo hoje sobre algo que nada tem a ver: as declarações do Presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, quando defendeu que «as pessoas não podem vir para o nosso país sem terem um trabalho».

Xenofobia e unicórnios

Falava Moedas de imigração, na sequência de um incêndio, no bairro da Mouraria, que vitimou dois trabalhadores migrantes, ferindo outros 14. Gente que vivia em condições degradantes na moradia sobrelotada que, como outras antes, ardeu.

Tamanha insensibilidade não tem nome; e a xenofobia está mais do que nas entrelinhas. Sobre isso já escreveu, melhor do que eu, o José Soeiro. Mas o que aqui quero é sublinhar o cinismo desta eminência laranja da direita nacional.

Moedas não quer o que diz: ele é o principal promotor, na cidade e no país, do que podemos chamar de gig economy, capitalismo de plataformas ou simplesmente de superexploração pretensamente hi-tech. Bate-se por uma Lisboa cuja economia se centre no poder das grandes empresas ditas tecnológicas que dominam as entregas, o TVDE ou o alojamento local. É esse o significado da sua obsessão unicórnica.

Ora, estas plataformas não se baseiam em tecnologia particularmente avançada ― dados móveis generalizados e algoritmos hoje comuns ―, mas na capacidade de quebrar a legislação laboral (e a regulamentação em vários terrenos), impondo um modelo de trabalho sem direitos e pago à peça. Um modelo de trabalho sem contratos que, no nosso país, pela sua demografia e características do mercado de trabalho, é predominantemente realizado por imigrantes.

Farto de saber isto está Moedas, melhor do que nós. O edil dos unicórnios sabe, quer, pretende e projeta um modelo de cidade assente (entre outras coisas) na superexploração de trabalhadores migrantes por multinacionais monopolistas que não fazem contratos de trabalho. Ele sabe, quer, pretende, projeta o oposto do que afirma: quer milhares de trabalhadores migrantes sem trabalho, disponíveis no centro da cidade, onde laboram, necessariamente aglomerados em habitação sem condições na mão de especuladores inescrupulosos. Tudo ao contrário do que afirma, tudo tal e qual como ele promove.

O que quer Moedas?

Se não quer o que diz querer, o que pretende, então, Moedas?

Umas das pistas vem-nos do seu camarada (e concorrente?) Luís Montenegro. O líder do PSD proferiu, pelos mesmos dias ― com a precisão que denuncia um cálculo frio ― palavras quase iguais às do ex-comissário europeu: «Têm de vir para os países com contratos de trabalho». Dias depois, subiu a parada: «É imoral uma sociedade onde as pessoas que trabalham chegam ao fim do mês e ganham menos do que pessoas que não trabalham.» Já não se trata de uma aproximação ao Chega, mas de uma mimetização ipsis verbis ― acolhida por este com agrado, na senda da sua disponibilização recente para governar com o resto da direita.

Não há, portanto, mistério algum.

Os tropeções de Costa espelhados nas sondagens e o fervilhar do descontentamento social foram gatilho. O PSD está ao ataque com olhos postos nas próximas eleições ― regionais, europeias e, quiçá, mais do que isso. E a estratégia é a apropriação do discurso neofascista para disputar com o seu promotor, sem o excluir de soluções. A competição e a colaboração, neste caso, não se excluem. Os restantes acontecimentos, com juízes, polícias e neonazis em tribunais, complementam a coisa: não é só uma movimentação partidária, parte da máquina estatal já se move no mesmo sentido.

É grave. Muito grave. Não há como exagerar o perigo. Recordemos que nos EUA de Obama, o triunfo de Trump era impensável; tal como a vitória de Bolsonaro era impossível antes da ascensão do capitão; e Meloni era, até há pouco, uma extrema da extrema tida como secundária.

(Tom diferente tem sido o do Presidente da República que, muito bem, tem não só remado contra a xenofobia como criticou a deriva dos porta-vozes do seu partido. Esperemos que esse capital não desague em mais soluções açorianas, entregando o poder, regional ou nacional, ao mesmo programa que hoje critica. Mas não tenhamos tanta fé.)

Contemos, contudo, connosco apenas ― com a maioria social que pode nas ruas travá-los, na luta por liberdade, direitos e igualdade. Preparamo-nos, preparemo-nos, preparemo-nos.

Porque eles já se prepararam.

Sobre o/a autor(a)

Assistente editorial e ativista laboral e climático
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