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Porteiros e seguranças: nem invisíveis nem descartáveis

Com a exceção das escolas, poucos são os serviços públicos onde este trabalho não foi ainda externalizado para empresas de segurança.

Quando vamos a um hospital ou a um museu, a um centro de saúde ou a uma biblioteca, a uma faculdade ou ao centro de emprego, à segurança social ou a uma repartição de finanças, as primeiras pessoas com que nos cruzamos são eles e elas: porteiros, vigilantes, seguranças. São quem recebe, muitas vezes são quem primeiro dá a cara. Mas o seu contrato é com empresas privadas que mudam periodicamente.

O processo de subcontratação deste tipo de funções foi levado, nas últimas décadas, ao limite. Com a exceção das escolas, poucos são os serviços públicos onde este trabalho não foi ainda externalizado para empresas de segurança. A subcontratação faz-se em concursos periódicos que, regra geral, acabam por ser ganhos pelas empresas que oferecem um preço menor (muito embora, ao contrário do que frequentemente se diz, a lei não defina esse critério como absoluto). A escolha de contratar sempre o mais barato tem gerado uma corrida para o fundo em termos de salários e condições laborais, além de ter estimulado formas de concorrência agressiva e desleal entre empresas.

Além da questão da externalização em si mesma e das situações bizarras que por vezes cria, há ainda uma outra relacionada – a de saber o que acontece aos trabalhadores quando, com um novo concurso, a empresa muda. Ultimamente, não faltam exemplos de novas empresas que, quando ganham, tentam fugir à obrigação de ficar com os trabalhadores que já estavam naquele serviço antes, muito embora a lei lhes confira essa obrigação.

Aconteceu agora no Ministério do Trabalho e nos serviços respetivos (ACT, Segurança Social, IEFP), aconteceu no Ministério da Saúde, como acontece todos os anos em faculdades ou museus. Pessoas que estão há décadas naqueles serviços, que conhecem a instituição e quem a frequenta, que estabeleceram uma relação com os alunos ou com os seus colegas, são colocados periodicamente numa aflição e são descartados como se fossem coisas. Nuns casos mandam-nas embora, com o argumento de que “uma nova empresa ganhou o concurso” – e os responsáveis das instituições que contratam o serviço lavam covardemente as mãos, como se não lhes coubesse exigir que aqueles trabalhadores que fazem a vigilância, a portaria e a segurança permanecessem (a menos que não tivessem essa vontade) com o novo empregador. Noutros casos, as empresas de segurança aceitam ficar com os trabalhadores que já lá estão, mas propõem-lhes que façam um novo contrato, precário – em vez de os manterem com o vínculo, a antiguidade e os direitos que estes já tinham. Assim, muitos dos 40 mil trabalhadores da segurança privada em Portugal passam anos nos mesmos postos de trabalho, mas sempre com contratos precários, cujo fundamento é a ficção patronal de que tudo se inicia do zero de cada vez que acontece um novo concurso entre empresas.

A situação não é apenas injusta – é ilegal. Em 2018, o Parlamento aprovou uma lei sobre a “transmissão de estabelecimento” que reforçou o regime que já existia e até a jurisprudência europeia. A lei deu aos trabalhadores o direito de se oporem à transferência para a nova empresa, mas garantiu também que, caso o trabalhador queira, a empresa que ganha um concurso para a exploração de um serviço assume também “a posição do empregador nos contratos de trabalho dos respetivos trabalhadores” e que, com o novo empregador, os trabalhadores “mantêm todos os direitos contratuais e adquiridos, nomeadamente retribuição, antiguidade, categoria profissional e conteúdo funcional e benefícios sociais adquiridos”. Esta mesma garantia é explicitada no contrato coletivo assinado com o STAD (o sindicato histórico deste setor).

Só que as empresas não gostam da lei – nem do contrato coletivo. Para escaparem a essa obrigação, muitas têm chantageado os trabalhadores que, temendo perder o seu emprego, lá assinam um novo contrato. Outras socorrem-se de um outro contrato coletivo e remetem o cumprimento da lei para uma alegada necessidade de acordo entre as duas empresas (a que estava e que ficará), pondo nas mãos dos patrões de cada uma delas a assinatura de um acordo em que eles, evidentemente, não veem vantagem.

Poderíamos olhar para este caso e encará-lo apenas como mais um exemplo das múltiplas técnicas de precarização que hoje existem. No entanto, para além de se tratar de um esquema das empresas para contornar a lei, trata-se também da falta de ação de quem pode regular, fiscalizar e, como contratante, exigir que se cumpram as regras: o Estado, cada Ministério e cada instituição pública.

Artigo publicado em expresso.pt a 13 de dezembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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