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Porque o Natal são só dois dias

Tudo serve para que cada um de nós possa atenuar a fome das crianças e oferecer-lhes um Natal melhor. Esquecemos que o Natal são dois dias e que a 26 de Dezembro as crianças continuarão a ser pobres e a ver os seus direitos impiedosamente negados e pisados.

Assinalou-se no passado dia 20 de Novembro o aniversário dos 25 anos da Convenção dos Direitos das Crianças das Nações Unidas. Ratificada por 194 Estados, esta Convenção significou um indubitável marco no progresso dos direitos das crianças por todo o mundo. Rege-se pelo primado do superior interesse da criança e nela se estabelecem os direitos das crianças à não discriminação, à liberdade de expressão e ao acesso à informação, à adoção, proteção contra maus tratos, negligências, exploração sexual, rapto e venda, a cuidados e serviços médicos, à segurança social, educação, lazer e atividades culturais, a não trabalhar, à proteção de conflitos armados.

Vinte e cinco anos depois, num mundo pautado pelas consequências duma ideologia capitalista que não olha a meios para atingir os seus fins e pelo eclodir de conflitos armados um pouco por todo o lado as crianças estão cada vez mais arredadas da proteção que lhes é devida. O que está no papel fica no papel.

Segundo dados da UNICEF 13 milhões de crianças na União Europeia estão privadas dos bens essenciais à sua sobrevivência. Cerca de 30 milhões vivem em situação de pobreza nos países ditos “desenvolvidos”. Em Portugal, o cenário não é diferente. Desde a formação do governo de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas mais de 500 mil crianças perderam o abono de família. Cerca de 50 mil famílias viram cortado o RSI. Grande parte dos desempregados não têm acesso a qualquer subsídio ou fonte de rendimento. As famílias monoparentais são duplamente afetadas. Cerca de 30% das crianças e jovens até aos 17 anos está em risco de pobreza. 15% sofre de pobreza consistente, ou seja, está simultaneamente em risco de pobreza e em situação de privação material.

Uma criança pobre já é demais, mas talvez por os números serem tão assustadores e dada a influência da época natalícia, multiplicam-se as iniciativas de “solidariedade” um pouco por todo o país. Cabazes alimentares, concertos solidários, chamadas de valor acrescentado, recolha de brinquedos e roupas, tudo serve para que cada um de nós possa atenuar a fome das crianças e oferecer-lhes um Natal melhor. E enquanto nos ocupamos com estas ações de solidariedade e nos confortamos na nossa capacidade de empatia e humanidade, esquecemos que o Natal são dois dias e que a 26 de Dezembro as crianças continuarão a ser pobres e a ver os seus direitos impiedosamente negados e pisados.

Preferimos ignorar que as crianças são responsabilidade de todos e esquecer que podemos fazer mais e infinitamente melhor para oferecer a todas as crianças o direito a serem crianças. Podemos contribuir para que todos os dias tenham comida nos pratos, para que tenham direito à saúde, à educação, à habitação, para que todas tenham as mesmas oportunidades, para que possam olhar para o futuro com esperança.

Mas para isso as campanhas de caridade no Natal não servem. Para isso serve a exigência da reposição dos abonos de família, a recusa dos despedimentos e da precariedade, o aumento do salário mínimo nacional, a devolução dos salários aos pais e das pensões aos avós, o investimento na Escola Pública e na Saúde, o combate à corrupção, a defesa da justiça fiscal, a recusa de que uns poucos enriqueçam continuamente à custa da exploração de tantos, a denúncia do Tratado Orçamental que não é mais do que receita melhorada da austeridade da Troika. Para isso serve ir para a rua, exigir a demissão do Governo, lutar por um futuro diferente do que o que nos querem impor, a nós e às nossas crianças. Para isso serve o voto de cada um de nós e que nenhum cabaz ou concerto solidário pode substituir.

Para isso basta a convicção de que a defesa e proteção das crianças merece o nosso empenho todos os dias do ano e não apenas no Natal.

Sobre o/a autor(a)

Feminista e ativista. Socióloga.
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