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Porque é que o salário mínimo é essencial

Teria pouco sentido voltar agora aos braços de uma teoria destruidora, que sugere que se congele ou reduza o salário real para incentivar as empresas a criarem emprego. Aumentar o salário mínimo é das decisões mais ponderadas que se pode tomar para 2021.

A injunção de Carlos César no Facebook aos partidos de esquerda para que “se definam de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos” causou estranheza, não tanto pelo seu estilo já consagrado mas antes por ser uma voz oficial a publicitar a ameaça poucos dias antes de se iniciarem as conversas entre partidos e Governo sobre os detalhes orçamentais. Se pretendia enunciar que se trata de uma encenação, a sugestão surge no tempo certo; se se trata de uma estratégia negocial, então é desastrada, ninguém se assusta com uma intimação. Talvez não seja nada disso e se trate somente de um percalço agostino, o que mereceria todo o carinho. Sigo então o melhor conselho: trate-se das decisões importantes, sem cuidar de veraneios. Começo pelo salário mínimo.

Promessas

O compromisso governamental de um aumento faseado do salário mínimo até aos 750 euros na legislatura foi cumprido em 2020, com um aumento de 35 euros. Antecipar-se-ia que esse seria o ritmo para os próximos três anos. Há em todo o caso duas ordens de razões para que esse processo seja confirmado. A primeira é que se trata de uma jura e, se um Governo a abandonar na primeira curva, como já aconteceu com o salário mínimo noutro Governo PS, só confirmaria que vale mais a oportunidade do que o respeito pela sua própria palavra. A credibilidade democrática pede o cumprimento da promessa. Não é pouca coisa.

Há ainda uma segunda razão para prosseguir o aumento anual e também é uma questão de credibilidade: o primeiro-ministro assegurou repetidamente que, mesmo com a recessão da covid, não haveria recuo e não se repetiriam os erros da crise anterior, nomeadamente a política de ataque aos salários e pensões. Bem sei que a ideia já perpassou por aí em 2015, quando o PS propunha congelar as pensões por mais quatro anos para assim obter 1660 milhões de euros, mas essa regra foi aniquilada pelos acordos da ‘geringonça’. Nunca mais se ouviu a proposta; pelo contrário, as pensões foram aumentadas. E, no contexto da crise presente, não voltar atrás foi a frase mais repetida por Costa.

O salário é o pilar da recuperação

Naturalmente, todas as razões democráticas serão, ainda assim, confrontadas com a dificuldade da recessão, mas não creio que o Governo possa alegar que o salário deva ser congelado por esse motivo. Seria lembrado que o ministro das Finanças saiu em junho assegurando que a crise económica não era grave, que o Governo festejou os dinheiros europeus como uma salvação garantida para essa crise que não era grave e que o primeiro-ministro se obrigou a não haver austeridade. Por isso, o dossiê do salário mínimo será revelador. O Governo pode prosseguir o aumento, como deveria, ou recuar, e nesse caso, para salvar a face, se decidir ceder à pressão patronal, optará por um cocktail de aumento insignificante do salário e mais medidas de financiamento empresarial. Essa solução não seria aceitável.

Não é aceitável precisamente por estarmos a viver uma recessão muito real, se não mesmo mais grave do que o Governo admitiu até hoje. Neste contexto, reforçar o investimento exige medidas ousadas. Mas todas as soluções se medem pela criação de capacidade produtiva, sustentada por procura efetiva, e de emprego com competências. Ou seja, é mesmo porque há crise económica que o salário mínimo deve aumentar em 2021, e até por valores superiores aos de 2020. Vejo dois argumentos razoáveis para esse aumento.

O salário mínimo é a referência social

O primeiro é que o salário mínimo é um valor de referência para as políticas sociais. Por razões compreensíveis, essa relação é hoje indireta, as prestações sociais já não lhe estão amarradas. Mas a sua evolução indica sempre se a política de rendimentos valoriza o salário e o emprego e protege quem precisa das políticas sociais. Sendo necessária uma revisão em profundidade dessas políticas, que modernize e reorganize os sistemas de proteção contra a pobreza, o primeiro sinal será sempre como evolui o pilar salarial. De facto, no combate ao empobrecimento, os dois instrumentos fundamentais que garantiram a eficácia das políticas sociais foram até hoje a criação de prestações dirigidas a apoiar os mais necessitados (o RSI e o CSI e ainda, noutra medida, os aumentos extraordinários das pensões mais baixas, por exemplo) mas também o aumento do salário mínimo, dado que as famílias de muitos trabalhadores vivem no limiar da pobreza mesmo com a remuneração. Sem o aumento do salário mínimo, teríamos muito mais pobres em Portugal.

A segunda razão é que é preciso sustentar a procura interna, que constitui a parte maior do produto interno e, portanto, da procura dirigida ao sistema produtivo. Com a redução das exportações, torna-se evidente que é na procura interna que está a capacidade de almofadar a recuperação a curto prazo. Além disso, a recuperação do salário pressiona toda a economia a melhorar o seu sistema de qualificações. O pleno emprego é o projeto económico que melhor define uma sociedade decente por isso mesmo: representa justiça distributiva mas também reforça a capacidade nacional com os incentivos certos, melhor qualificação para produção mais exigente e estratégica. O facto, em todo o caso, é que aumentar o salário mínimo cria emprego e não desemprego, ao contrário do que afirmavam as teorias que faliram na última década, como é agora reconhecido de modo generalizado na academia a partir da experiência concreta (e foi o que se passou em Portugal ao longo dos últimos quatro anos). Se já sabemos pela nossa vida que é assim, teria pouco sentido voltar agora aos braços de uma teoria destruidora, que sugere que se congele ou reduza o salário real para incentivar as empresas a criarem emprego, o que não farão, menos ainda se a procura se reduzir. Aumentar o salário mínimo é das decisões mais ponderadas que se pode tomar para 2021.

Definir sem mais demoras

Haverá certamente que combinar esse aumento do salário mínimo com duas outras medidas estruturantes: rever o sistema de prestações sociais e reformatar os contratos de trabalho, para universalizar a proteção, incluir os precários e evitar o subterfúgio tradicional, que tem vindo a ser seguido por muitas empresas ao longo das últimas décadas, que consiste em precarizar o trabalho para reduzir os salários, ou agora em uberizar os contratos dos mais qualificados e dos mais desqualificados. Sem esses caminhos, a melhoria do salário mínimo terá efeitos residuais. Como eles, será um instrumento potente para a recuperação económica (e deles tratarei em próximas semanas). Aqui está, em todo o caso, um dos domínios em que bem se aplicaria a intimação de César: é bom que todos “se definam de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos” sobre o aumento do salário mínimo.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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