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Póquer nuclear

A 100 km da fronteira portuguesa, a construção de um aterro para resíduos nucleares representa séculos de vida em regime de penhor.

Sendo que o anedotário monárquico ainda reza sobre a falta do bom vento que não sopra e sobre a realidade do bom casamento que não se faz, o pior que pode agora vir de Espanha são mesmo radiações. Sinal dos tempos, já não há vento que assuste ou casamento que não invoque a perspectiva de falência, venha-de-onde-vier-esteja-onde-quer-que-esteja, monárquico ou republicano. Como aqueles produtos fora de prazo que se vão mantendo esperançosos no frigorífico, a central nuclear espanhola de Almaraz - a 100 km da fronteira com Portugal - já deveria ter sido encerrada há 17 anos, mas continua a funcionar em céu aberto numa espécie de regime de validade post mortem que alimenta as conveniências energéticas e interesses económicos de alguns.

Aparentemente, interessa pouco que a velhice já lhe tenha revelado problemas de segurança graves e sérias dúvidas sobre a operacionalidade das bombas de água do sistema de refrigeração, como terão alertado inspectores do Conselho de Segurança Nuclear Espanhol. Ela vive, como vivem os alienígenas de Carpenter. E agora, com a luz verde do Governo espanhol para que nela se construa um armazém para material radioactivo, carimba-se um novo prazo de extensão de validade. Os anos 80 no retrovisor, aquele tempo em que a principal luso-ameaça espanhola à saúde pública eram caramelos transfronteiriços de Vigo ou Ayamonte.

A resolução inesperada e unilateral da Direcção-Geral de Política Energética e Minas espanhola não é um assunto interno ou doméstico. A 100 km da fronteira portuguesa, a construção de um aterro para resíduos nucleares representa séculos de vida em regime de penhor. A decisão espanhola é ilegal, desrespeita directivas europeias, atropela o Governo português e acende a Comissão Europeia. Por influência da central nuclear de Almaraz, medições do Campus Tecnológico Nuclear do Instituto Superior Técnico, o rio Tejo apresenta níveis maiores de radioactividade se comparado com qualquer outro rio português, parecendo evidente que o nosso país é incapaz de responder capazmente a um acidente nuclear ainda que se promova de imediato um plano de emergência adequado.

A reacção do ministro do ambiente Matos Fernandes é boa e recomenda-se. Ameaçando faltar à reunião prevista e agendada para debater este assunto aparentemente já decidido, empurra a discussão para a Comissão Europeia tendo em conta a falência de uma solução bilateral. Quando, à escala global, a corrida ao armamento está no jogo de palavras de póquer nuclear entre Trump e Putin, é desconcertante perceber como se praticou o bluff do silêncio entre países com fronteira, interesses comuns e rio partilhado.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 4 de janeiro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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