A política do sublime (medo, terror e anomia) e a estética do consenso

porRui Matoso

11 de setembro 2013 - 0:03
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Tudo o que este Primeiro-Ministro possa dizer ou fazer é fruto de uma falsa consciência, uma sistemática visão deformada do mundo, útil à manutenção de um estado de confusão geral (crise) adequada a este estádio do capitalismo neoliberal. E mais concretamente aos objetivos do FMI.

Santiago Sierra, Los encargados (2012)

Interessa-me, como possível alegoria da política do sublime, o discurso “angelical” de Passos Coelho na universidade de verão (2013)1 do PSD, mais especificamente na parte em que diz: “não há nenhum governo, garanto-vos (…) que goste de infligir mal e dor àqueles de quem depende para ser eleito... não é porque que quer que as pessoas vivam pior!”. Esta denegação implica obviamente a indução positiva de que este governo (e os governos em geral) se guiam pela bondade e pela intenção de propor apenas “boas medidas” capazes de ter um impacto positivo na vida dos cidadãos e eleitores.

Bastava cingirmos-nos às evidentes incoerências pragmáticas e discursivas, ao recurso banalizado à mentira e, em suma, à falta de ética e impreparação na governação, para verificar que tudo o que este Primeiro-Ministro possa dizer ou fazer é fruto de uma falsa consciência, uma sistemática visão deformada do mundo, útil à manutenção de um estado de confusão geral (crise) adequada a este estádio do capitalismo neoliberal. E mais concretamente aos objetivos do FMI. A perceção negativa acerca deste governo sem qualidades não é exclusiva da esquerda, Ângelo Correia, amigo e tutor de Passos Coelho, afirma que a retórica do líder do PSD “não tem consistência. Há discursos que não se podem ter porque as palavras atraiçoam os comportamentos.”2

A construção social do consenso

Na história da governação democrática em Portugal, e com maior ênfase na governação autárquica, estávamos habituados à teoria e prática da “construção social do consenso”, também conhecida como “grau zero do poder local”, isto é, a um funcionamento excessivamente consensual da ação política, que ao longo de décadas tem sido responsável pela diminuta participação cívica no debate e construção de alternativas políticas. O paradigma desta visão consensualista impediu, e continua a impedir, a existência de uma efetiva conflitualidade democrática onde os diversos projetos políticos pudessem ser confrontados.

A partir dos anos 90, uma versão mais sofisticada da “construção social do consenso” apoderou-se da cultura como efeito ornamental, fruto de uma crescente estetização do mundo no contexto do capitalismo cultural. As populações, carentes de uma certa modernidade cultural veiculada pelos media, aderiram facilmente aos gostos dos governantes que lançavam sobre as cidades rotundas enfeitadas com objetos bizarros (em alguns casos esculturas), festas populares encenadas, simulações históricas, festivais de tudo-e-mais-alguma-coisa, alimentando desse modo uma estética do senso comum3 e assumido com naturalidade o exercício da “política do gosto” (a imposição do gosto do príncipe ou césar local). Uma operação estetizante da ação política, cujo corolário é a instrumentalização da esfera pública em benefício da acumulação de consenso político e do seu equivalente universal - os juízos de gosto e o “sentir em comum” absorvidos pela máquina de controle e governação.

Em síntese, na base do funcionamento destas formas de fazer política está a perspetiva estética de querer agradar ao povo (eleitorado) através de um constante circo de imagens e de eventos ditos culturais que sirvam à manutenção do satus quo. As relações entre arte (estética) e política foram (e continuam a ser) na Europa com o fascismo (estetização da política) e o comunismo (politização da arte); e em Portugal com a “política do espírito” de Salazar e Ferro, formas evidentes de controlar ideologicamente as massas e “conquistar o coração do povo” como afirmava Leni Riefenstahl, cineasta oficial do IIIº Reich.

Contudo, como é sabido, a história da estética tem dois lados, o lado do Belo e o lado do Sublime. Até há pouco tempo em Portugal, a relação da política com a estética do “sensus comunis” fundava-se nesse acordo (consensual) entre uma suposta boa governação e uma suposta beleza universal. No entanto, a partir do Séc. 21 dá-se uma viragem e o sentimento do Sublime começa a tornar-se evidente, atingindo atualmente o seu paroxismo evidente.

Imagem do vídeo The Shock Doctrine (Naomi Klein)

 

A política do sublime (medo, terror e anomia)

There is no alternative!

Margaret Thatcher

O sentimento do Sublime, na análise Kantiana, ocorre no desastre sofrido pela imaginação, pela faculdade de imaginar, o sublime emerge pela falência da faculdade de representar o sensível (as formas da matéria), provocando “automaticamente” um deslize para a esfera da razão. A imaginação, incapaz de lidar com o informe (o absoluto, o terrível) transforma-se em entendimento racional, chamado a desenvolver estratégias de obtenção de prazer estético a partir das circunstâncias terríveis (prazer negativo) .

No atual contexto político hegemónico dominado pelo “fascismo financeiro”, uma das formas de fascismo social identificadas por Boaventura Sousa Santos “por ser o fascismo mais pluralista é também o mais agressivo, porque o seu espaço-tempo é o mais refratário a qualquer intervenção democrática”.

Esta agressividade emanada do imenso poder discricionário do capital financeiro global que ao longo de décadas e em diversas partes do mundo vem aplicando a mesma receita destrutiva (com variações locais), é bem retratada por Naomi Klein em A Doutrina do Choque4, onde são analisadas as influências de Milton Friedman e dos seus acólitos Chicago Boys no FMI, designadamente a passagem da época das ditaduras militares na América Latina para uma nova fase de ditadura das dívidas e da retórica do ajustamento estrutural, aplicada agora aos países europeus, como previsto pelo “Washington Consensus” (1989).

Em Portugal, as pessoas “só acabam com os maus hábitos quando enfrentam choques” disse enfaticamente Carlos Moedas, secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro (Maio 2013), demonstrando assim o posicionamento do Governo e a sua adesão às teses de Friedman.

Aqui e um pouco por toda a a Europa, com incidências distintas como se sabe nos países do sul, a esfera pública mediática é ocupada exclusivamente (ou quase) desde o início da “crise financeira” pelo discurso político-financeiro neoliberal e “austeritário”, colonizando-nos as mentes através do uso de violência simbólica (repetição, inculcação, coerção, mentira,...).

Este aparato comunicacional visa a criação de um imaginário social ao nível do desespero, que permita acatar sem grandes sobressaltos públicos as palavras de ordem, de que esta: "só vamos sair da crise empobrecendo" (Passos Coelho, 2011) é um mero exemplo. Criando assim um horizonte negativo de expectativas, a que se segue simultaneamente uma “terapia de choque” disruptiva que permita consolidar na prática a transferência de valor do trabalho para o capital: cortes contínuos nas pensões e salários, aumento de impostos, financiamento da banca, saque do fundo de reserva da Segurança Social, privatizações, etc. Ainda hoje ecoa o ditado absoluto: “There is no alternative”, clamado por Margaret Thatcher em 1979, como quem lança palavras de ordem ao futuro.

Após a destruição do World Trade Center em Setembro de 2001, a redução à dicotomia maniqueísta do confronto entre o bem e o mal favoreceu a manipulação ideológica, a conquista emocional das subjetividades e a formação de um consenso bélico populista. O ato legislativo conhecido como “Patriot Act”5, promulgado por George Bush em 26 de Outubro de 2001, atingiu de forma autoritária o processo democrático que afirmava pretender proteger, aumentando a suspeita e intimidação de vozes críticas no debate público, e desencadeando a proliferação de dispositivos de vigilância sobre a sociedade civil.Deste então, opoder dos media na sustentação de um imaginário de catástrofe deve-se bastante à ascensão do terrorismo à categoria de imagem estética.

Na mesma família de imagens sinistras, as fotografias e vídeos de Guantanamo ou da prisão de Abu-Graib (Baghdad) entroncam numa mesma lógica de exploração mediática da humilhação e da tortura de seres humanos. O poder destas imagens é tal que se transformaram em ícones da imaginação coletiva contemporânea, impregnando o consciente e o subconsciente com uma eficácia maior e mais profunda do que qualquer outra obra de arte realizada por um artista. Obviamente há diferenças de intenção: enquanto que os artistas (das vanguardas) praticaram o iconoclasmo com o propósito de destruir o sistema de crenças associado ao poder idealizante da imagem, o terrorista, pelo contrário, pretende reforçar o poder de sedução das imagens.

As imagens terríveis, de terror, de crimes hediondos, de tortura, que circulam cada vez mais pelas redes de comunicação, fazem parte dessa paisagem obscena constituída pela pulsão do imediato (sem mediação) e do impensável, num curto-circuito de contaminação viral onde se tocam os dois extremos da obscenidade e da sedução.

Do ponto de vista da representação política podemos dizer que se trata da passagem de um regime estético fundado na ideia de belo (a idealização das virtudes, que nos totalitarismos têm o seu clímax no kitsch, essa insustentável leveza do ser, segundo Kundera) para um regime do sublime (a angustiante mas sedutora presença do terrível).

É aliás fácil de constatar que a generalidade dos governantes europeus já não se esforçam sequer em representar-se como seres belos, justos e plenos de virtudes, assumindo-se completamente, e pelo contrário, como seres repugnantes capazes de todas as infâmias contra os povos.

Isto passa-se como se a vulgarização da corrupção e da brutalidade das medidas austeritárias fosse uma inevitável banalidade, da qual eles seriam os inevitáveis verdugos cujas ações, na prática da vida quotidiana, resultam num incremento generalizado do sofrimento.

É nesta trilogia da dominação, do fascismo financeiro, do terrorismo mediatizado e da obscenidade política que hoje vivemos. A lógica política dominante requer a reestruturação absoluta da vida e das relações sociais segundo o modelo mercantil, atacando de seguida as formas de proteção social do Estado, e para isso mobiliza o imaginário do terror como obscenidade e obsolescência do real, cujos efeitos no tecido social provocam a regressão das possibilidades de emancipação e a consequente anomia social.

Mas afinal, há algum governo que queira infligir mal e dor aos seus cidadãos ?

Claro que não... (risos).


1http://www.youtube.com/watch?v=r50nFWjN_FM [a parte do discurso surge aos 40m.30s]

3 É conhecido o mecanismo que desde Kant e da sua “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” dá origem ao “sensus comunis”: o prazer estético não se define tanto como o que o sujeito experimenta em relação ao objeto, mas como prazer que deriva de constatar a própria pertença a um grupo consensual de apreciadores desse mesmo objeto e da sua capacidade para apreciar o belo, formando-se assim uma comunidade de apreciadores (de fãs).

4http://youtu.be/afGIxp775G0 (documentário realizado a partir do livro homónimo)

Rui Matoso
Sobre o/a autor(a)

Rui Matoso

Investigador e docente universitário
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