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Piropo, pornochachada ou assédio?
Comecemos pelo início: faz alguns anos, não muitos, mas alguns, que ativistas e organizações feministas têm defendido a tipificação do assédio sexual como crime no código penal português. Era necessário reivindicar uma lei com efeitos dissuasores e que passasse uma mensagem clara: o assédio sexual vai contra a liberdade e a dignidade humana e por isso deve ser punível.
Avançar com uma luta deste tipo não é fácil, especialmente em tempo de crise e de austeridade. A velha lengalenga do “há problemas mais importantes, mais prementes” ganha especial peso quando há muita gente, cada vez mais gente, a passar fome.
O problema é que não devemos tolerar a porrada e o maldizer, para poder garantir o pão. Mesmo que lutar pelas duas coisas em simultâneo dê muito trabalho e soe a dispersão, essa dupla luta é estratégica: é no caldo social alimentado pela austeridade que a ideologia machista mais facilmente ganha alento. Afinal, é necessária uma moral que possa legitimar a privatização dos cuidados feita com o desmantelamento dos serviços públicos, do Estado Social.
A campanha não se resumia à questão jurídica mas, tendo em conta a polémica gerada em torno de um tema quase tabú, dá para perceber que já valeu a pena: sem debate, é mais difícil a tomada de consciência.
E aqui há um debate que interessa fazer, pelo menos se pretendermos transformar mentalidades e formas de estar: o do piropo.
Entendamos: assédio sexual verbal não é sinónimo de piropo.
O assédio sexual envolve um tipo de conduta que pode incluir avanços sexuais, pedidos de favores sexuais ou outro tipo de conduta verbal ou física de natureza sexual, que importuna a outra pessoa. Essa conduta é importuna porque a outra pessoa não a deseja.
O piropo, diz o dicionário, na sua raíz etimológica até quererá dizer inflamado, em chamas. E, no sentido informal, refere-se à expressão ou frase dirigida a alguém, geralmente para demonstrar apreciação física.
São coisas diferentes mas que se cruzam. Por isso, é natural que o debate tenha soado numa espécie de pornochachada sobre os bons e maus piropos, as boas e más tiradas sexuais.
Só que se gostamos ou não de “elogios” sexuais, mais ou menos explícitos, mais ou menos reles, mais ou menos porcos, mais ou menos criativos, mais ou menos poéticos, é o que menos interessa para tratar a questão do assédio sexual.
O problema não é semântico nem tão pouco de estética literária. É cultural e político. Aquilo que em tese são elogios podem constituir uma forma de abuso de poder, reflexo da desigualdade de género, culturalmente enraizada na nossa sociedade.
Não há formula matemática - nem jurídica - para definir onde acaba o piropo e começa o assédio. Mas vale a pena refletir porque é que, na prática, culturalmente, o piropo se tornou sinónimo de assédio.
Olhando relatos de experiências de assédio sexual verbal, contadas na primeira pessoa, por mulheres de contexto social, cultural, geográfico e económico distinto, percebemos que, tanto em Portugal como no Brasil ou na Índia, em Lisboa ou em Ponta Delgada, os relatos parecem-nos todos tão familiares: o discurso do assediador; a vergonha e/ou repulsa, o sentimento de impotência, por quem é alvo de assédio sexual.
Habituadas a ouvi-lo desde miúdas, rapidamente percebemos que aquilo que poderia ser apenas um elogio - e virtualmente motivo para contentamento -, ou apenas uma insinuação, foi-se constituindo como celebração patriarcal: o (detalhe) quotidiano lembrando que ser-se mulher é estar disposta a submeter-se a tudo, até mesmo ao asco.
Podemos até tolerá-lo e fazer um sorriso. O sorriso pode ser amarelo ou ruborizado, que o pudor e modéstia ficam sempre bem.
Mas é bom ter a consciência que esta é uma cultura que temos de transformar, pelo menos se queremos poder celebrar a liberdade de receber, com agrado, um elogio. Afinal, não é esse o seu propósito?
Comentários
«O assédio sexual envolve um
«O assédio sexual envolve um tipo de conduta que pode incluir avanços sexuais, pedidos de favores sexuais ou outro tipo de conduta verbal ou física de natureza sexual, que importuna a outra pessoa. Essa conduta é importuna porque a outra pessoa não a deseja.»
Esta definição é tão vaga que se pode traduzir por «assédio é o que um juiz quiser». Como «perturbação da ordem pública» ou até, em algumas ordens jurídicas mais «avançadas», "conduta inadequada". A linguagem jurídica vaga sempre serviu o autoritarismo, porque permite punir por qualquer razão ou por razão nenhuma.
A questão é semântica, sim, porque se trata de um abuso de linguagem que consiste em usar um sentido figurado como se fosse literal. Em sentido figurado, pode chamar-se assédio a qualquer insistência que seja sentida subjectivamente como importuna, mas em sentido literal só se pode chamar assédio a um comportamento que retire a outrem todas as opções. Não se trata de "ir contra" (outra formulação vaga) a liberdade de alguém: trata-se de privar alguém, objectivamente, da sua liberdade, como quando se impõe a uma pessoa a alternativa de fazer algo (de carácter sexual ou não) que não lhe é exigível ou perder o emprego.
Assim como não deve haver, numa ordem jurídica civilizada, crime sem vítima, também não deve haver vítima puramente subjectiva. Um dano causado, para ser punível, tem que ser objectivo e verificável. Não basta que seja alegado, por mais sentida e sincera que seja a alegação.
Olá José Ferreira
Olá José Ferreira
Bom seria, de facto, um mundo sem vítimas. Infelizmente neste mundo existem vítimas de assédio sexual, incluindo verbal. A criminalização de quem assediar não é a solução mágica mas é importante ter presente que o assédio, de facto, vai contra a liberdade e a dignidade humana. É necessário encontrar proteger e levar a sério quem vê esses direitos desrespeitados. Desse ponto vista, parece-me que a recente alteração à lei é perfeitamente razoável e as reacções são reflexo de uma sociedade de tendeu a normalizar o assedio sexual e, em especial, o assedio sexual verbal.
Mas a definição referida no meu texto não corresponde à formulação jurídica recentemente adoptada nem era objectivo do meu texto explicitar qual seria a mais adequada. O esquerda tem um texto sobre isso disponível aqui: http://www.esquerda.net/artigo/piropo-com-teor-sexual-e-crime-e-da-pena-...
Da minha parte, pretendia apenas contribuir para o debate em torno do piropo - que, em tese, não constitui assédio verbal mas que por vezes se confunde - para contribuir para a tomada consciência da natureza cultural e política do assédio.
A clareza sobre onde acaba o piropo e onde começa o assédio pode ajudar à transformação de mentalidades. É essencial definir esses limites no quadro das relações de poder. O bom senso pode ajudar muito. Por exemplo, uma mesma frase (e sim, com o mesmo sentido semântico) não tem o mesmo significado, independentemente de quem se dirige:
se o disseres à tua mulher, à tua namorada ou parceira sexual, a uma amiga de longa data que o aceita como um elogio ou uma piada;
ou se o disseres a uma mulher que passa na rua;
a alguém com quem trabalhas e está em posição subordinada;
ou ainda a uma aluna tua.
E não terá, com certeza, o mesmo significado se for uma adolescente ou uma criança.
Este mesmo exemplo, pode-se aplicar se a pessoa a quem se dirige a mensagem for um homem. Curiosamente, no entanto, parece ser menos comum a expressão de piropos de teor sexual dirigida por homens outros homens, ou por mulheres a homens. Este facto, em si, merece reflexão.
Da mesma forma, e esse era um dos objectivos do texto, há uma dimensão subjectiva a considerar. As mulheres são, habitualmente, alvo de assédio sexual desde bastante novas. Algumas mulheres começaram a ser alvo de assédio ainda quando eram crianças. Em alguns casos, infelizmente bem mais comuns do que se possa imaginar, essas experiências cruzaram-se com experiências de abuso sexual. Em qualquer dos casos isto começou a acontecer numa altura em que a sua maturidade sexual ainda está para desenvolver. Neste sentido, aquilo que pode não te parecer assim tão ofensivo, na outra pessoa poderá causar danos bem objectivos.
Por isso, mesmo tendo uma dimensão subjectiva e sendo uma questão complexa, há aqui uma questão crítica: é assunto que não deve ser minimizado, ridicularizado, antes como um problema a ser tratado seriamente. Era também esse o objectivo do texto.
Lancei as mãos à cabeça. Foi
Lancei as mãos à cabeça. Foi neste país que nasci? Num país onde, segundo as palavras da autora do artigo (que parece estar a esclarecer a lei), qualquer tipo de conduta verbal ou física de natureza sexual, que importuna a outra pessoa é assédio sexual? Ou seja, dá direito a prisão, é isso? Depois a Lídia diz que não é uma questão de semântica, mas depois já diz que "não há formula matemática - nem jurídica - para definir onde acaba o piropo e começa o assédio". Prova em muitos pontos que a lei é ridícula/anedótica e a velha história da vitimização das mulheres vem ao de cima no fim (não estava nada à espera...). Enquanto cada vez mais surgem casos de acusações falsas de violação sexual no mundo ocidental, onde o homem inocente é preso ficando com a sua vida arruinada. E já repararam que nem passa pela cabeça de ninguém que um homem possa sofrer de um caso assim, um dia na sua vida? NÃO É "celebração patriarcal" coisa nenhuma. As únicas pessoas que pensam em "celebração patriarcal", são as pessoas que INVENTARAM esse conceito. Não existe nem é sistemático, é vitimização e a única razão pela qual essa vitimização continua é porque muitos homens já nem ligam a este "white-noise" ou barulho das luzes, onde tudo ofende e tudo merece repreensão. E a mulher não tem que "estar disposta a submeter-se a tudo, até mesmo ao asco", eu concordo plenamente com isto, o problema é que demonstra uma visão VERGONHOSA e OFENSIVA das mulheres como fracas e incapazes de lidar com problemas sendo mais fácil ser o estado lidar por elas. My sisters, please! Antes de sermos homens, somos rapazes e se todos os casos fossem como o meu (nunca se afastam muito), os homens estariam rodeados de mulheres na maior parte do seu dia acordados, desde a nascença até ao 7º ano (onde tive um único professor), e vi estas mulheres gritarem e baterem em crianças. Crianças brutalizadas, tornam-se adultos brutos. Quando na parte ocidental do mundo as mães batem mais 50% em crianças indefesas do que os pais. (Agora deve ser porque são oprimidas e têm que ficar em casa a cuidar da cria, não?), mães, parem de bater nas vossas crianças, e parem de culpar factores exteriores a vocês como o bicho papão da patriarquia. É só olhar para debaixo da cama, ele não vai estar lá, porque não existe. A liberdade de expressão está em perigo, até já houve um caso de um homem que foi preso nos EUA por ter discordado de uma feminista no twitter. E se algo ofende alguém, o problema é da pessoa que se sente ofendida porque não é capaz de perceber que entre o estímulo e a reacção, há espaço para escolher.
O B.E. anda estranho Emoji unsure. Mando cumprimentos, só queremos um mundo melhor. Paz, beijinhos e piropos. Emoji heart
Caro Boris
Caro Boris
Assediar outra pessoa nada tem a ver com liberdade de expressão.
Por essa ordem de ideias comentários racistas também poderiam seguir impunes.
O piropo é e sempre foi
O piropo é e sempre foi engraçado, só quem nunca recebeu um é que pode sofrer de tamanha frustração e concordar com uma lei destas.
Caro Pedro
Caro Pedro
Se voltar olhar o texto vai ver que não trato piropo como sinónimo de assédio.
Quanto o seu comentário-à-laia-de-psicologia-barata, ele parece-me ser um bocado forçado mas enfim, fará a interpretação que melhor entender.
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