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Pense duas vezes antes de confiar nos banqueiros centrais

Em Jackson Hole, o que se ouvirá é o conselho de restringir a emissão monetária e substituir a ação anticrise pela pose majestática dos bancos centrais.

É hoje [a 27 de agosto] que se reúnem, desta vez online, algumas dezenas de personalidades, das quais mais de metade serão banqueiros centrais, na estância de Jackson Hole, no Wyoming. O programa completo era desconhecido até ontem, mas sabe-se o que a casa gasta: este é um dos mais antigos e, decerto, o mais influente dos fóruns deste tipo, discutindo os contornos das políticas monetárias. Não é para o G7 que se deve olhar para antecipar a evolução da economia, é para Jackson Hole. O problema é se podemos confiar nestes banqueiros centrais. A experiência recomenda cautela, pelo menos.

Ao longo de 2020 e 2021, os governos das economias mais poderosas não hesitaram em responder à crise pandémica com estímulos de grande porte. O Reino Unido registou no ano passado um défice de 14,3%. No caso dos Estados Unidos, o aumento da dívida é um recorde histórico. As autoridades de outros países, como Portugal, foram mais restritivas, mas nos países mais ricos não houve hesitação e os bancos centrais agiram à uma: injetaram torrentes de liquidez nas economias, comprando grandes quantidades de dívida emitida tanto por governos quanto por empresas. O BCE continua a comprar dívidas no valor de 80 mil milhões por mês. O resultado é que, dos 28 biliões de dólares de títulos que estão nos balanços destes bancos, 11,7 biliões foram comprados no último ano e meio. Uma das discussões de Jackson Hole será o que fazer com este tesouro.

O melhor mesmo é não entregar o ouro ao banqueiro e deixar a democracia decidir sobre a economia

Para iniciarem esta política, os banqueiros centrais afastaram-se da sua ortodoxia tradicional, que aconselhava a que, mesmo em recessão, mantivessem uma política monetária restritiva, com um crescimento reduzido da massa monetária. Isso significaria repetir a receita recessiva e a política de austeridade, que agravou a recessão mundial em 2009 e gerou a crise das dívidas soberanas em 2011. Só que era politicamente impossível repetir a catástrofe, e os bancos centrais submeteram-se à exigência política, perante a indignação dos monetaristas, que preferiam a cura recessiva. Na verdade, provou-se que a política de compra pelos bancos centrais das emissões de dívida que financiam a atividade pública é consistente, nos casos em que há independência cambial, e é ainda mais necessária no contexto de uma crise.

Há no entanto duas dificuldades. Uma é que esta política, se não são criadas compensações fiscais, agrava a desigualdade, pois valoriza as fortunas baseadas em ativos financeiros. A segunda é que, se os juros subirem de novo, os bancos centrais registarão prejuízo, dado que a taxa de juro de reservas assim criadas regista flutuações de curto prazo comparáveis à das emissões de dívida pública. Mais pela segunda do que pela primeira razão, alguns banqueiros querem desativar os programas de compras de dívida e reduzir os balanços dos bancos centrais. Um antigo governador do Banco de Inglaterra, Mervyn King, agora presidente de uma comissão da Câmara dos Lordes, veio dizer que a compra de dívida é uma “perigosa adição”; os bancos da Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido já estão a reduzir o ritmo de compras. Com a sua gestão política, o BCE não se moveu ainda. Mas em Jackson Hole o que se ouvirá é o conselho de restringir a emissão monetária e substituir a ação anticrise pela pose majestática dos bancos centrais, mesmo que ainda não saibam de que modo restabelecerão o desleixo como regra. Por isso, o melhor mesmo é não entregar o ouro ao banqueiro e deixar a democracia decidir sobre a economia.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 27 de agosto de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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