É claro que as comparações com 1998 são sempre enganosas. São muito enevoadas pelo tempo que passou, pela memória que cada protagonista tem das disputas internas em que deu opinião e, sobretudo, pela amargura da derrota e pelos ajustes de contas. Não me parece, por isso, que haja muito a ganhar com a rememoração de 1998 e a razão retrospectiva que todos os derrotados de então podemos agora ostentar.
Mas alguns factos são factos: em 1998 perdeu-se porque não se disputou a maioria. Guterres, secretário-geral do PS e primeiro-ministro então no auge de popularidade, apelou ao Não. O PS, partido maioritário, ficou paralisado e não fez campanha. O movimento do Sim foi unicitário onde devia ter sido diverso, foi confuso onde devia ser claro. E não quis ir ao país falar para os milhões de eleitores que iam decidir.
Essa foi toda a diferença em relação à campanha actual. Os movimentos e os partidos do Sim dirigiram-se, com grande convergência, à maioria do povo. O Bloco de Esquerda fez sobretudo campanha nos distritos onde o Não tinha ganho, e com bons resultados. O PS participou na campanha, mesmo que em alguns distritos a sua presença tenha sido mais do que discreta e alguns dos seus autarcas tenham desaparecido. Todos intervieram insistentemente para explicar a pergunta e para defender o Sim à pergunta que estava no boletim de voto.
Na verdade, essa era a estratégia mais radical. A pergunta conduziu todo o debate sobre as questões mais essenciais: despenalizar ou não e ser a mulher a decidir. Essas eram as questões fundamentais, porque eram as que desafiavam a ordem conservadora e o reaccionarismo discriminatório - e decidiam a mudança da lei. Como escrevia Frei Bento Domingues, a pergunta incomodava os reaccionários sobretudo pela frase "por opção da mulher", porque para estes a mulher nunca pode decidir porque não tem responsabilidade para tal.
Eram ainda as questões fundamentais, porque sobre elas se conjugava a aliança e convergência que multiplicou a força social do Sim. Foi devido a essa força de mobilização que muitas pessoas diferentes, incluindo sectores muito expressivos do PSD, se juntaram ao Sim. O Sim tinha que mobilizar a esquerda (e mobilizou), tinha que ganhar muitos votos de católicos (e ganhou) e tinha que conseguir muitos votos do centro e do PSD (e ganhou, em particular em Lisboa).
Esta era a estratégia mais radical e temos disso uma demonstração definitiva: foi a que desorientou o Não, que o dividiu e que o desequilibrou na última semana. Quando Marcelo Rebelo de Sousa, Bagão Félix e Marques Mendes, além da Plataforma do Não, vêm propor formas de despenalização para tentar salvar o voto Não, podia-se perceber que a estratégia do Sim tinha ganho porque tinha determinado os termos do debate. Todos, o Sim e o Não, percebiam que aquilo que ia determinar a escolha dos eleitores era a despenalização. Foi esse o ponto decisivo, a alavanca que deu maioria à mudança da lei.
Era preciso ser radical para vencer. Era preciso querer vencer. Era preciso querer um Sim onde coubesse toda a gente. Era preciso mobilizar uma maioria de milhões. E foi assim que o Sim venceu.