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Pela saúde de todos

A saúde é um setor onde o português comum não iria prever a possibilidade de ocorrer falências. Afinal de contas, como poderia um hospital privado falir? Será assim tão descabido?

Existem bancos que declaram falência. Há seguradoras e grandes multinacionais que seguem o mesmo caminho. Mas, quando são demasiado grandes para falhar, quando as externalidades do seu colapso são desproporcionais e com impacto assimétrico na população, os estados vêem-se forçados a intervir. Debaixo de eufemismos como resgates, o modo de atuar tem sistematicamente sido o de salvar os grandes negócios, recuperar e revender. Sempre com perdas para o setor público, que suporta os prejuízos, mas não beneficia dos lucros.

Os prestadores privados, que não deram uma resposta séria durante os tempos difíceis de pandemia, não podem agora ser recompensados com uma renda garantida

A saúde é um setor onde o português comum não iria prever a possibilidade de ocorrer falências. Afinal de contas, como poderia um hospital privado falir? Será assim tão descabido?

Em janeiro de 2018, as campainhas de alarme ecoaram pelo serviço nacional de saúde britânico. O colapso do grupo Carillion, evidenciou as fragilidades dos grandes grupos económicos a operarem na saúde privada. Os seus 8 mil profissionais de saúde tornaram-se desempregados, num país com um défice crónico de trabalhadores nesta área. Os utentes tiveram que ser rapidamente absorvidos pelo setor público. A fatura, paga pelo contribuinte, ascendeu a perto de mil milhões de libras.

Em outubro de 2018, o maior hospital privado espanhol, o Povisa de Vigo, com uma faturação anual garantida de 75 milhões de euros, declara-se em processo de pré-falência e culpa o governo regional pela insolvência. Este é um caso paradigmático da ineficiência privada a gerir instituições de saúde. Este hospital, apesar de privado, operava como sendo público. Recebia uma renda anual de 542 euros por habitante, garantida pelo governo regional, e tinha a possibilidade de exercer, simultaneamente, atividade privada convencionada com seguros. Algo como uma PPP da saúde, permanente e eterna, criada pelo governo do PP. Cerca de 500 camas de internamento, dezenas de milhares de utentes, quase dois mil trabalhadores, ficaram desta forma com o futuro em suspenso. Após vários meses de impasse e indefinição, no final de 2019 o hospital foi vendido a capital norte-americano.

Já em abril deste ano, o grupo norte-americano Quorum, dono e responsável por 24 hospitais, anunciou que iria entrar em falência. Novamente, doentes ficam desamparados, profissionais de saúde tornam-se desempregados.

Num Sistema de Saúde como o dos EUA, o impacto de uma pandemia pode ser bastante cruel. O Center for Disease Control (CDC) recomendou o expectável em contexto de emergência de saúde pública: a suspensão da atividade programada e a ativação de planos de contingência. Esta recomendação não combina num paradigma de saúde neoliberal. A suspensão da atividade programada nega automaticamente grande parte das receitas aos prestadores privados, que ficam perante a escolha imoral, salvar vidas ou salvar os lucros.

É igualmente possível observar destes exemplos em Portugal. O hospital privado construído em Vila do Conde em 2014, com o patrocínio do governo de Passos Coelho, no início de 2018 já era notícia por ter salários em atraso. No final do mesmo ano, num atribulado processo de venda, acabou por ser adquirido pela Trofa Saúde. Mais recentemente, já em contexto de pandemia Covid-19, assistimos a vários serviços de saúde privada a encerrarem atividade. No momento em que seriam mais necessários, não estiveram à altura do acontecimento. O SAMS, conseguiu a proeza de encerrar totalmente as portas, assumindo que seria temporário, mas não se inibindo de recolher apoios públicos. Por sua vez, o grupo CUF reduziu a oferta, encerrando várias unidades da sua rede. Novamente, assistimos ao mesmo padrão, profissionais de saúde a conheceram a amargura do desemprego, enquanto os doentes foram rapidamente absorvidos pelo sempre presente SNS.

Temos várias boas razões para investir e melhorar o SNS, público, universal, geral e gratuito. Esta é só mais uma. É uma rede que não falha, que prioriza a saúde em vez do lucro. Quando os prestadores privados falham, por falência, falta de vontade ou incapacidade de atuarem em contexto de pandemia, o SNS tem a capacidade de absorver os seus doentes, não deixando ninguém para trás.

Os próximos tempos serão de enorme desafio. É imperativo recuperar a atividade programada, que foi suspensa para dar uma resposta eficaz à pandemia que vivemos. Para tal, é necessário investimento e organização. Os prestadores privados, que não deram uma resposta séria durante os tempos difíceis de pandemia, não podem agora ser recompensados com uma renda garantida. Pela saúde de todos, pela equidade no acesso aos cuidados de saúde, temos que tomar a decisão estratégica de investir na saúde pública ao invés de lucros para os acionistas privados.

Sobre o/a autor(a)

Enfermeiro especialista em saúde infantil e mestre em saúde pública.
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