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Paz profunda na Tecno-Utopia

Um novo filme no Channel 4 insulta os verdes, ao mesmo tempo que evita a questão do poder.

Pois o Channel 4 (Canal 4 da TV britânica) fê-las de novo. Nos últimos 20 anos transmitiu uma série de polémicas sobre o ambiente, e a maior parte delas foi ferozmente anti-ecologista1. Noutras questões, os filmes do Channel 4 mostram todos os lados. Mas não quando se trata do ambiente.

 Na noite passada pôs no ar outra polémica: “O que o Movimento Ecologista não percebeu”. Esta foi apresentada por duas pessoas que ainda se consideram verdes: Stewart Brand e Mark Lynas. Não é tão raivoso como outros filmes. Mas, como os seus predecessores, difunde falsidades clamorosas sobre os ambientalistas e insere-se confortavelmente na agenda empresarial. O filme é baseado no livro de Brand, “Whole Earth Discipline”2. Argumenta que os ecologistas, ao não conseguirem abraçar as tecnologias correctas, impediram tanto o progresso ambiental quanto o social. Nem tudo o que diz está errado, mas o seu relato está embebido de pensamento mágico, no qual se espera que a tecnologia resolva todos os problemas políticos e económicos. Esta visão, agora popular entre consultores de empresas verdes, é sustentada na ignorância da questão do poder.

O filme começa, por exemplo, por culpar os ecologistas pelo fracasso da política ambiental. Mas, como um trabalho publicado na revista Environmental Politics mostra, os movimentos ecologistas continuaram a crescer, atingindo mais pessoas em cada ano. O que mudou é que um poderoso contra-movimento, conduzido por thinktanks financiados por grandes empresas, tem feito guerra à política ecologista3. “Este contra-movimento foi central para a inversão do apoio dos Estados Unidos à protecção do meio ambiente, tanto interna como internacionalmente.” Uma viragem semelhante ocorreu noutros países.

Muitos dos thinktanks foram lançados nos anos 1970 por empresas e multimilionários que procuravam limitar os direitos laborais e evitar a distribuição da riqueza. Depois do colapso do comunismo soviético, a atenção dos seus financiadores mudou da ameaça vermelha para a ameaça verde. Este lóbi teve um acesso ao governo e a dinheiro com que os ecologistas nem podiam sonhar. Ambientalistas culparem-se uns aos outros pela falta de progresso é trair uma ausência alarmante de contexto.

Mas a visão de Brand depende de esquecer o contexto. Ele sustenta que salvaremos a biosfera adoptando energia nuclear, colheitas geneticamente modificados e geo-engenharia, e desenha um quadro jovial de um mundo que funciona com precisão em base a essas novas tecnologias. Sem uma crítica do poder, o seu tecno-utopismo é fantasia pura. A electricidade nuclear de facto pode ser parte da solução, mas o verdadeiro desafio do clima não consiste em meter-se em novas tecnologias, mas em sair das velhas. Isto significa confrontar algumas das forças mais poderosas do mundo, um tema que não tem lugar na história de Brand.

De forma semelhante, embora o mundo tenha tido excedentes alimentares durante muitos anos, quase um milhar de milhão de pessoas passa permanentemente fome, enquanto cereais suficientes para as alimentar várias vezes são dados a animais e usados para fazer biocombustíveis. Isto não porque haja falta de tecnologia, mas porque os pobres têm falta de poder económico e político. A proposta do filme – que devemos mudar para tecnologias que tendem a ser monopolizadas por grandes conglomerados – pode exacerbar este problema.

As tentativas de Brand para evitar conflitos com o poder são compreensíveis: ele fundou uma consultora para grandes empresas chamada Global Business Network4. Mas a ideologia que abraçou pô-lo mais perto dos grupos de lóbis das grandes empresas do que ele poderá ter consciência.

Por exemplo, o filme sustenta que, em consequência de campanhas de grupos como o Greenpeace, o pesticida DDT foi interdito no mundo inteiro. O resultado foi que a malária se desenvolveu em África, “matando milhões”. Só um problema: o DDT para controle de doenças não foi proibido (se não acreditar em mim leia o Anexo B da Convenção de Estocolmo 20015) e o Greenpeace não pediu que isso acontecesse6. A história da proibição foi um mito espalhado por lobistas para desacreditar os verdes7. No filme, Stewart Brand diz que quer que os verdes admitam quando estão errados. Desafiei-o a admitir que percebeu mal a história do DDT antes de o filme ir para o ar. Não recebi nenhuma resposta8.

Brand e Lynas apresentam-se como hereges. Mas as suas ficções convenientes aderem ao pensamento da nova ordem estabelecida: corporações, thinktanks, políticos neoliberais. Os verdadeiros hereges são aqueles que nos lembram que nem progresso social nem ambiental são possíveis a menos que o poder seja confrontado.

O ambientalismo não é apenas substituir um conjunto de tecnologias por outro. A mudança tecnológica é importante, mas ela protegerá a biosfera apenas se também tratarmos de resolver questões como o crescimento económico, o consumismo e o poder das grandes empresas. Esses são os desafios que o movimento verde nos pede para tratar. Essas são as questões que o filme ignora.

www.monbiot.com

Publicado no Guardian de 4 de Novembro de 2010

Tradução de Paula Sequeiros para o Esquerda.net

2 Stewart Brand, 2010. Whole Earth Discipline. Atlantic Books, London.

3 Peter Jacques; Riley Dunlap; Mark Freeman, 2008. The organisation of denial: Conservative think tanks and environmental scepticism. Environmental Politics, 17:3, 349-385. DOI: 10.1080/09644010802055576.

http://www.informaworld.com/smpp/content~content=a793291693~db=all~order=page

6 O Greenpeace contactou repetidamente os lobistas que puseram a circular este mito para explicar que não pedira a proibição do DDT para fins de controle de doenças, mas eles continuam a repeti-lo.

8 E-mail enviado às 11h22 no dia 3 de Novembro, e, para outros endereços, mais tarde naquele dia..

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