As patentes acima de tudo!

porBruno Maia

14 de fevereiro 2021 - 21:46
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A OMC discute uma proposta, apresentada por Índia e África do Sul, para suspender patentes de produtos médicos que combatam a Covid-19, pelo período em que durar a pandemia. A proposta não tem qualquer hipótese: EUA, UE e Reino Unido estão contra.

Desde há cerca de 3 meses que a Organização Mundial do Comércio (OMC) discute uma proposta, apresentada por Índia e África do Sul, para suspender patentes de produtos médicos que combatam a Covid-19, pelo período em que durar a pandemia. A proposta não tem qualquer hipótese: Estados Unidos, União Europeia e Reino Unido estão contra. Ao seu lado, mais uma série de países ricos: Japão, Suíça, Canadá e Austrália. Face à escassez de vacinas, o objetivo era permitir que os países mais pobres pudessem utilizar a capacidade que têm para produzir as suas próprias vacinas, ou na ausência desta, negociarem preços que pudessem comportar. Mas isso não vai acontecer. Porque os países mais ricos não querem.

No momento em que nos encontramos, a escassez de vacinas representa uma coisa só: violência sobre os países mais pobres. O Canadá já comprou, antecipadamente, doses de vacinas que chegarão para vacinar 5 vezes a sua população, enquanto a Nigéria ainda não viu sequer uma dose. Austrália, Japão e Canadá representam 1% da população mundial mas já asseguraram mais vacinas de que toda a América Latina junta.

No início da pandemia, quando era politicamente frutuoso falar de solidariedade global, a Assembleia das Nações Unidas aprovou uma resolução em que apelava aos governos do mundo e à indústria farmacêutica que garantissem um “justo, transparente, equitativo, eficiente e atempado acesso e distribuição” de tratamentos e vacinas a todos os que deles necessitassem, especialmente os países mais pobres. Em Maio de 2020, 140 chefes de Estado e líderes, entre os quais Durão Barroso, assinavam um apelo conjunto em que se podia ler: “Este não é o tempo de permitir que os interesses das empresas e governos mais ativos sejam colocados acima da necessidade universal de salvar vidas, ou de deixar esta tarefa moral gigantesca às forças de mercado. O acesso às vacinas e tratamentos como bens públicos globais é do interesse de toda humanidade. Não podemos permitir que os monopólios, competição bruta ou nacionalismo míope se atravessem neste caminho”. De seguida, a própria Organização Mundial da Saúde (OMS), publicava o “Solidarity call to action”, um documento subscrito por dezenas de países, entre os quais Portugal, em que apelava às farmacêuticas a “partilha voluntária de conhecimento relevante, propriedade intelectual e dados que permitam a produção e distribuição em larga escala” de ferramentas como as vacinas.

A OMS parece conhecer bem o mundo onde se move! Apoiou, por isso, em parceria com governos e outras entidades, a criação do mecanismo “Covax”, cujo objetivo é distribuir vacinas pelos mais pobres do mundo. Até hoje, terá recebido 1,7 mil milhões de euros, com contribuições muito generosas do Reino Unido e do Canadá e com a promessa de Joe Biden doar o dobro do que foi angariado até agora. A União Europeia contribuiu com 96 milhões de euros... 5,8%! O maior bloco económico do mundo contribui com 6%! Mas mesmo com a doação dos norte-americanos, a Covax só conseguirá comprar vacinas para 10% dos países mais pobres. Muito aquém da meta dos 2 mil milhões a que se tinha proposto.

Winnie Byanyima, diretora da UNAIDS, o programa da ONU para o VIH/SIDA, que tão bem conhece a história horripilante da SIDA em África e das recusas das grandes farmacêuticas em colaborar com a distribuição de medicamentos antirretrovirais entre os mais pobres, afirmava há pouco: “Há um apartheid na vacinação. É uma discriminação e é realmente vergonhoso o que está a acontecer. Vemos os países ricos a discutirem entre si sobre quem vai receber que quantidade, enquanto outros países apenas podem ficar à espera a assistir, penso que é uma vergonha!"

Meia dúzia de farmacêuticas irá deter todas as patentes das vacina contra a Covid-19. A Pfizer, primeira na corrida, prevê produzir 1,35 mil milhões de doses no ano de 2021. Só que já vendeu mil milhões aos países mais ricos. Traduzindo por miúdos: vendeu 82% do total da sua produção a 14% da população. E a Moderna, a segunda vacina a chegar ao mercado, já vendeu 780 milhões de doses das mil milhões que projeta produzir este ano – 78% da sua produção vendidos a 12% da população!

A União Europeia pode espernear com a AstraZeneca e as expectativas defraudadas na entrega de vacinas no primeiro trimestre. Mas enquanto continuar a fazer parte deste “bloco” de poderosos que bloqueiam qualquer tentativa de alargar ou anular as patentes na OMC, deixando mais de 80% da população mundial desprotegida, nunca será mais do que a embaixadora da pura soberba incompetente de quem nem contratos sabe redigir.

E o mais trágico nesta história nem é a ganância e a falta de solidariedade dos países mais ricos. É mesmo o facto de sabermos que se não protegermos o resto do mundo, novas mutações acumular-se-ão e farão ricochete nos países mais ricos. Já dizia o presidente da OMS a semana passada: “se não vacinarmos todo o mundo, daqui a um ano voltamos à estaca zero”. Nessa altura, as vacinas não terão servido para nada. Tantos milhões e tanta soberba deitados ao lixo. Mas haverá quem tenha ganho: a Pfizer que já anunciou lucros de 15 mil milhões aos seus acionistas para o final do ano e a Moderna que os estima em 5 mil milhões!

Bruno Maia
Sobre o/a autor(a)

Bruno Maia

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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