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A patente de um desastre europeu

O levantamento das patentes é a única forma de acelerar a produção e distribuição global de vacinas, rentabilizando o investimento público que foi feito em larga escala para o bem comum global. A UE, inexplicavelmente, escolheu reduzir-se a um papel de insignificância internacional.

O declínio moral do império americano no Mundo não podia arrastar-se mais pela lama. Donald Trump fez tudo o que podia para cimentar a ideia de um país dividido entre os arquétipos culturais que abominava e queria abolir, em confronto com os que respiravam, como ele, o espaço identitário dos perigosos idiotas.

No momento em que a pandemia crescia e Trump acordava para a realidade que tentava minimizar, a prioridade foi negociar uma vacina exclusiva para os EUA. Agora, no momento em que se percebe que a pandemia só pode ter um fim com uma boa resolução à escala global, Joe Biden dá um passo monumental para a credibilização de uma liderança moral que só parecia estar ao alcance da Europa, mesmo com todas as suas contradições e actuais perigos. A vontade, expressa por Biden, de apoiar o levantamento das patentes sobre as vacinas produzidas para combater a covid-19 não se limita a acender uma luz. Aponta-a directamente aos olhos da Europa.

Quando se percebe que até Putin defende a suspensão das patentes das vacinas, não basta que Ursula von der Leyen passeie lirismos. A Europa é o principal exportador de vacinas a nível mundial, cerca de 200 milhões de doses, facto. "A Europa é agora a farmácia do Mundo e estamos orgulhosos disso", assegura a presidente da Comissão Europeia em processo de maquilhagem. A União Europeia (UE) está a gerir este dossiê como geriu a questão dos contratos com as farmacêuticas: a formular um desastre. O levantamento das patentes é a única forma de acelerar a produção e distribuição global de vacinas, rentabilizando o investimento público que foi feito em larga escala para o bem comum global. A UE, inexplicavelmente, escolheu reduzir-se a um papel de insignificância internacional, num exercício de puro proteccionismo à maximização do lucro das farmacêuticas. E ainda que reconheça o erro, já se viu amplamente ultrapassada.

A Cimeira Social do Conselho Europeu, a decorrer no Porto nestes dias, está finalmente pronta para discutir a questão. A reboque de uma excepção ao Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) que está cansada de conhecer; à boleia da intenção dos EUA e da Rússia e atrelada a uma proposta da Índia e da África do Sul que remonta a Outubro; no contexto do falhanço da iniciativa Covax (que pretendia fazer chegar vacinas aos países de baixos e médios rendimentos) devido à situação de catástrofe que se vive na Índia (que assegurava boa parte do fornecimento e que, agora, guarda vacinas para consumo interno); a reboque de campanhas dos Médicos sem Fronteiras, da Organização Mundial da Saúde e de várias personalidades. Dentro da UE, a Espanha já declarou publicamente ser favorável à suspensão das patentes em nome do bem público internacional da saúde. E Portugal, que preside à UE? De que está à espera?

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 7 de maio de 2021

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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