Angra do Heroísmo celebrou, sem grande efusividade, o 488° aniversário da sua existência, enquanto escala universal do mar de poente. As cerimónias foram as habituais, com trocas de palavras simpáticas, homenagens, momentos musicais e discursos pouco inflamados.
Ao mesmo tempo que tudo se passava, o centro da cidade centenária estava adormecido. Não passavam pessoas para visitar as obras de betão armado que foram sendo sistematicamente aprovadas por um executivo camarário que parece gozar de uma proteção divina junto da UNESCO e da DRAC. Surpreendentemente, as e os visitantes depressa perdiam o interesse em visitar os estabelecimentos fechados e nem sequer manifestavam espanto com os monumentos históricos que já não existem e as pessoas que cá residem nem pareciam saber da data comemorativa.
Assim se fez uma cidade património mundial cada vez com menos património, muito por obra feita, ou desfeita.
Perante a inquietante realidade que se vive, parece pouco legítimo continuar a pensar esta efeméride da forma que a mesma é celebrada, centralizada e elitista, sem qualquer abertura a quem fez e continua a fazer da cidade a sua existência.
As pessoas vivem longe. O centro parece abandonado à maneira de um velho povoado saído de um western de Clint Eastwood. As freguesias estão de costas voltadas ao seu município e muitas e muitos dos seus habitantes, por razões várias, distanciam-se de Angra e do seu estatuto de Património, chegando a questionar se o mesmo faz sentido. Esse sentimento de desconfiança e insatisfação relativamente a tão importante galardão só acontece por duas razões: desconhecer os seus benefícios e pelas intervenções com a mensagem subliminar de que ser cidade património atrasa o desenvolvimento desta. Ambas são transversais, pois é normal que parte das e dos munícipes questione algo de que não se fala, não se elogia, não lhes seja palpável.
Não se discute nem se releva a herança cultural que fez de Angra a cidade do Heroísmo, outrora leal às suas gentes, enobrecida pelo sentimento honrado de um povo que ousou combater a tirania. Pelo contrário, parece que temos a Câmara do comércio, com a qual o executivo da Câmara Municipal colabora, querendo reproduzir um modelo de nicho de turismo, esquecendo que, embora arquipelágicas, estas ilhas têm especificidades próprias e que as mesmas devem ser enaltecidas.
Angra merece mais. Merece respeito pelo seu estatuto de património mundial da Humanidade. Merece ser vista pelas pessoas que cá vivem e a visitam. Merece ser reconhecida, não só pelos que habitam as torres de marfim, mas também pelos que moram nas suas freguesias e nas suas periferias.
Descentralize-se a cerimónia de celebração, levando-a até todas e todos.
Descentralizem-se as políticas de gestão, que devem ir para lá da opinião de uma pessoa só.
Descentralize-se o sentimento de pertença a uma cidade que é concelho, já foi Nação e será sempre escala do mundo.
Parabéns a Angra. Merece mais. Façamos por isso.