O mal de certas palavras é que não dizem nada. São moles, viscosas e esquivas. Ou pior: dizem sem dizer. Atentemos na palavra “exclusão”. Acrescentemos-lhe o epíteto: “social”. O que quer dizer? Que há pessoas que estão dentro e pessoas que estão fora (das redes e sistemas de integração social). Mas é tão branda, a palavra. Tão mole. E esconde: oblitera as causas. E engana: faz pensar que tudo se resolve dentro da jaula de aço da burocracia e da lógica administrativa: mais uns apoios aqui, uma caridadezinha acolá, eis que entram os que estavam fora, em especial se forem bem-comportados.
Outro exemplo: as “famílias desestruturadas”. Inúmeros relatórios oficiais ou mesmo estudos científicos sobre a pobreza tendem a enfatizar os problemas que certos modelos de desorganização familiar acarretam – e tanto se fala das famílias monoparentais como “grupo de risco”, responsabilizando-as explícita ou implicitamente pela sua condição ou pela má sorte dos filhos. E se olharmos do outro lado do espelho? Não será a pobreza que desestrutura e impede as uniões estáveis entre pessoas? Não será a insegurança por que passam no mercado de trabalho, o frenesim da interminável precariedade, os baixos salários, a falta de uma casa que se possa chamar sua? Matthew Desmond, sociólogo norte-americano, põe o dedo na ferida: “o modelo burguês da família com dois progenitores torna-se possível com o mesmo material que faz a burguesia: dinheiro”.
E se déssemos a volta às perguntas: porque são tão maltratados os pobres? Porque constituem o essencial da população prisional e das hostes de toxicodependentes? Porque engrossam os números do abandono e do insucesso escolar? Porque são espancados pela polícia se roubam num supermercado, como ainda agora aconteceu no Porto? Porque se tornam tão pouco visíveis em espaços públicos cada vez mais desenhados para o ver e ser visto do consumo ostentatório? Porque se reduzem as pessoas, a sua qualidade, a sua potência, ao valor de mercado das trocas simbólicas– os que nunca têm dinheiro para postar as suas experiências de férias, de gastronomia refinada ou de apresentação estilizada? Os pobres são os que se definem pelo vitupério do negativo (não têm dinheiro, não mostram glamour, não conhecem Bali) irritando todos os que só querem esquecer na gaiola dourada em que julgam ser livres, mostrando-se nos écrans onde jorra permanentemente o leite de ouro da intimidade positiva (ainda hoje li que se descobriu uma estrofe de Fernando Pessoa que começa com este verso: “A ave canta livre onde está presa”).
Mas voltemos ao que as brandas palavras escondem. De novo Desmond: “A pobreza persiste porque alguns querem e desejam que assim seja”. Encontremos, pois, as palavras que nos ajudam a percebê-lo: desigualdade, exploração, dominação. E façamos depois o caminho mais difícil: onde, como e para quem funciona esta “humanidade desfigurada”.
Para ler mais: Desmond Morris (2023), Poverty, by America, Allen Lane
Artigo publicado em Gerador a 21 de agosto de 2023