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País

Este é hoje um país ameaçado, torcido, mal amado. Teoricamente europeu, teoricamente independente.

País silêncio. País de passado colonial com aroma a café. País tristonho. País melancolia.

Muito de vez em quando o país parece animar-se com qualquer coisa. Ou é um campeonato de futebol, ou um casamento real, ou um pequeno escândalo, devidamente ampliado pelos media. Mas são minúsculos fogachos num dia a dia sem história. Ou melhor, com muita história, ainda que ela pareça invisível, sem o brio e sem o garbo que os grandes acontecimentos sempre lhe emprestam.

O dia a dia sem história contém toda a História de uma derrota declarada.

 

A História às vezes apanha-nos desprevenidos. Para o bem e para o mal. Enigmática é preciso prestar-lhe sempre grande atenção, porque tem tanto de caprichosa como de generosa. De vez em quando é cruel. Em cavalgadas ferozes pode atropelar-nos, se nos apanha distraídos. Fica, então, imparável e perigosa. A História. Ser alvo de um atropelamento da História faz de nós criaturas mínimas, sem segurança ou protecção.

O renovado pensamento neoliberal percebeu isso. E por isso mesmo colocou sentinelas um pouco por toda a parte. Sentinelas que nos adormecem, cheias de recursos narcóticos, o lixo mediático a entrar-nos em casa, e nós pimba, sossegados, sem acção, amortecidos. Mais. A declinar um discurso coincidente com o lixo que nos cederam para nele chafurdarmos à vontade.

 

Há, hoje, uma espécie de ansiedade da História, uma agonia, um mau pressentimento, uma vontade de ultrapassar esta época maldita de forma a evitar repetições de má memória. Por isso mesmo a História como que pede aos povos uma ajuda definitiva e possante, como que faz um apelo, como que sopra uma prece para evitar o destroço.

Pede sobretudo para ser contada, para que os ecos de um passado igualmente maldito cheguem até nós e nos alertem para o que perdemos e, principalmente, para o que ainda podemos ganhar.

 

A História é assim. Pode ter um bafo quente e feliz, bailar connosco alegremente a dança do futuro. Nessas alturas a História é uma gota de vinho, uma nota de música, um acorde de jazz, um piano suplicante no delírio de uma noite de amor. A música líquida amacia-nos o olhar, os anos rolam, esfregam-se por nós com afecto para que lhes demos alma, lhes façamos uma festa.

A história é tudo isto. É vida vivida. É vida que se quis viver e se viveu.

Pode ser também, com inquietante simetria, o contrário disto tudo.

 

O tempo histórico está agora na mó de baixo.

Porque este é o tempo de uma derrota proclamada, o tempo em que as hienas riem.

 

Este é hoje um país fechado para obras.

Este é o país que tem mar e não tem pescas. Este é o país que tem campo e não tem agricultura. Este é o país que correu com o Cavaco, o país que foi traficado até à medula pelo cavaquismo, e depois elegeu o mesmo Cavaco para presidente da república. Este é um país que deu férias à vergonha, que foi enganado e no engano se enganou, para votar naqueles que mais o haviam de enganar. Este é o país dos enganos.

 

Este é um país que vai ouvindo as saloiadas económicas dos Césares das Neves, Duques e quejandos, muito tensos, muito graves, a clamar pelo açoite, pelo azorrague, convocando carrascos, fantasmas e corsários. Sentinelas.

Este é hoje um país ameaçado, torcido, mal amado. Teoricamente europeu, teoricamente independente. Um país que acertou finalmente o passo com a Europa, quando a Europa deixou de ser Europa e passou a ser uma cláusula contratual de um pacto assinado por um tipo menor que dá pelo nome de Sarkozy e por uma soberana, resto de colecção da finada burocracia alemã oriental.

Troikas e outros flagelos percorrem-lhe os caminhos, invadindo-o, intrusivos e violentos. As armas de que dispõem, não são metralhadoras, nem sequer se pressentem as sirenes a anunciar bombardeamentos e a indicar abrigos. As bombas que agora usam são os memorandos assinados com canetas caras, são os acordos de privatizações sonhadas, são a venda a retalho dos nossos direitos. Todo um arsenal de combate, a que acresce a indecência de todos os BPN que por aí andam. Em suma, as explosões que agora conhecemos vêm mascaradas de dinamite económico. Assistimos impávidos ao deflagrar de grandes cogumelos de cortes e medidas. São bombas técnicas, financeiras, orçamentais, são as bombas do neoliberalismo quase cadáver, que já deu cabo de metade do mundo e se vencer, há-se dar cabo da outra metade. Possivelmente, se nada se fizer, só então implodirá.

Este é o país em que os actuais governantes nos querem transformar a vida num deserto e quanto mais água bebem mais sedentos ficam.

País de marés baixas. Tão baixas que os navios que queremos levar por diante encalham nos baixios.

País com sol, um sol molengão, a aquecer as tardes de desemprego. País com luz, uma luz íntima, que destapa misérias. País colmeia, com arrabaldes cada vez mais inactivos, envelhecidos e abandonados. País caçado, apanhado na rede, na armadilha, com a impiedade que o caçador sempre empresta ao sacrifício.

País mutilado, refém dos caprichos de agências, dos ratings de criminosos, das manhas da banca. País dependente e esquivo.

País calmo, tenso como uma lâmina empunhada em desespero, ou um caco de vidro agarrado numa rixa.

Este é o país que elegeu recentemente um governo de vão de escada e tem um Presidente da República que é um ministro sem pasta da acção governativa.

 

Este é o país que vive um Verão inquieto, retesado, que mais não faz que preparar uma perigosa aventura de Outono, em que a direita porá em prática tudo o que já aprovou.

Este é o Verão em que o BPN voltou ao seu ponto de origem cavaquista. A sordidez arruinada dos seus negócios foi colectivizada. Faz, neste Agosto dolente, parte da nossa vida.

Este é o Verão em que agências financeiras baixaram a cotação dos donos do mundo, provocando desassossego, apreensão, ansiedade, tudo sentimentos que se podem de um momento para o outro transformar em histeria com as consequências brutais que os ataques de pânico sempre têm em momentos de perturbação.

Na grande arena da especulação mundial as agências vestidas de matador pretendem a estocada final dada a preceito. Lantejoulas de números hão-de brilhar nos fatos que os relatórios hão-de vestir. Beberão champanhe na mesma taça em que o veneno nos é servido.

 

Horas selvagens aquelas que agora correm. Formamos um rebanho, um enxame, uma massa de esbulhados, de despojados de direitos que há muito nos pertenciam. Quando ousamos dizer isto, olham para nós em fúria e dizem-nos que foram precisamente esses direitos que provocaram a crise. Foi o nosso subsídio de desemprego de 400 euros que foi delinquente; foi o acesso a cuidados de saúde e a escola pública dos nossos filhos que tiveram a culpa; que bandidos e irresponsáveis fomos, que mania das grandezas tivemos, querer ter um carro para quê, com transportes públicos tão baratos, tão eficazes como os que agora temos, querer ter uma casa para quê com um mercado de arrendamento tão generoso…

Este é o país que tem ministros doutorados em violência económica e na veemência do tem de ser. Ministros – soldados com alma acrílica, e erros gramaticais.

Há meses, essa mesma gente deixava ficar na caixa do correio panfletos com créditos para a aquisição dos sonhos de plástico que outros como eles, ou eles próprios, nos vendiam. Telefonavam, insistiam, mesureiros e activos, quase imploravam que contraíssemos uma dívida. O apelo que faziam, um apelo cientificamente eficaz, propunha-nos a felicidade em prestações. Propunha-nos a satisfação momentânea de um consumo e a letras pequenas a amargura da perenidade do sofrimento.

Agora, quem quer que se esfole para pagar a prestação da fracção em propriedade horizontal situada num qualquer subúrbio mal amanhado, com infiltrações na casa de banho ou na cozinha, ou tenha um carro esfomeado por gasolina, é suspeito de ter sido o responsável por esta crise.

País menor.

País mercadoria.

 

E, no entanto, este é o país em que pode parecer que o céu está claro, descorado por nuvens leitosas e mansas, e de repente, este é o país em que aparece um relâmpago que se abre em trovoadas súbitas e tempestades bravias.

Nessa altura, este será o país que há-de cobrar com juros, em puro anatocismo*, o défice de alegria e o luto que agora vive.

 

 

* Juros de juros

 

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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