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Otelo

Por mim, não vou esquecer esta coisa miserável de negar a um símbolo, talvez o mais sincero da nossa memória, este agravo que lhe foi feito na hora da morte.

Estes que agora negaram o luto nacional ao Estratega parece que nunca viveram no fascismo nem assistiram ao 25 de Abril. Ou então, os mais jovens, os que não assistiram à libertação, parece que nunca ouviram falar da ditadura. Parece que não têm alma ou que ela lhes fugiu por entre os compromissos.

Robustez ética é coisa que não conhecem.

Todos os anos, pontualmente, a Assembleia recebe-os por entre cravos e sorrisos e discursos. Aí batem com a mão no peito e fazem juras de amor a quem libertou Portugal.

Sabem falar aquele dialecto do poder, conhecendo bem a disciplina da hipocrisia. E quando justificam o injustificável, neste caso negando o luto, percebe-se que o brilho da retórica é falso e a música que a acompanha é sebosa, fraca, a descair para o ordinário. Depois, sente-se a respiração da batota.

Batota, porque o luto nacional foi já decretado para outros militares que não mereciam essa homenagem; batota, porque o luto nacional foi já decretado para civis, cujo contributo sendo estimável, não tem comparação com aquilo que o estratega de Abril nos legou; batota, porque nos querem comer por parvos, aproveitando o esquecimento, contra o qual peroram mas do qual são cúmplices.

Da direita não se esperava outra coisa. Na noite da morte, as televisões entraram-nos dentro de casa com paleios despudorados contra quem tinha acabado de morrer; comentaristas sonsos, graves e profissionais lembraram incoerências, alegaram crimes, aproveitaram deslizes, sujando de lama a memória daquele a quem nunca perdoaram o fim da ditadura. De facto, o que nunca lhe perdoaram foi a audácia de estar vivo, de não ter medo do medo, de dizer com as letras todas o que pensava, de ser o símbolo de um período que lhes foi adverso.

O que mais custa, contudo, é a posição daqueles que devendo estar do outro lado da barricada, que podendo fazer o que devia ser feito, foram os primeiros a defender a omissão, fazendo da ingratidão uma bandeira. Simplórios, invocam timidamente uma diplomacia também simplória, achando que vão estar de bem com Deus e o Diabo. Não, não vão. Por mim, não vou esquecer esta coisa miserável de negar a um símbolo, talvez o mais sincero da nossa memória, este agravo que lhe foi feito na hora da morte.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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