Parece ser certo que a agressão da Rússia putinista à Ucrânia e a recente cimeira da NATO em Madrid puseram termo à época de globalização económica e de concorrência relativamente pacífica entre grandes e médias potências, ou se se quiser, entre velhas e novas potências imperiais emergentes após o fim da Guerra Fria. A reedição desta traduz-se numa disputa imperial em torno da longa fronteira oeste da Rússia, à custa do intermediário sacrifício do povo ucraniano, e traduz-se numa guerra sem fim e de desfecho imprevisível.
Do lado da Rússia putinista, porque ninguém sabe onde se pretendem deter os seus projetos neoczaristas de reconstituição do velho império, espicaçados pelas políticas de cerco da NATO. Ou quando e como o putinismo se sentirá compensado após os desaires iniciais da invasão. Da banda dos EUA e do seu braço armado, a NATO, porque se aproveitou em pleno a oportunidade oferecida por Putin para reforçar a tutela política e militar sobre a Europa e responder com uma guerra contra a Rússia até ao último ucraniano. Em Madrid, a NATO anunciou um propósito militarista megalómano de pôr 300.000 soldados em prontidão e servidos por armamento ofensivo, plano com três particularidades: tudo instalado nos países fronteiros da Rússia; pago pelos contribuintes europeus através de um vasto programa de rearmamento, onde avulta a sombra do poderoso rearmamento alemão; tudo, ou quase tudo, comprado às grandes indústrias militares dos EUA que juntam este supernegócio ao do petróleo.
Entretanto a União Europeia desaparece como entidade independente neste contexto. Desiste de assumir uma estratégia própria em defesa da Ucrânia e da paz e ajoelha perante a política de guerra sem fim com que a NATO, à custa do povo ucraniano e não só, pretende neutralizar a Rússia. Dizem-nos que é a luta das democracias contra as autocracias (disseram o mesmo como argumento para a carnificina da I Guerra Mundial…), mas parece que um “novo realismo” vai desfazendo essa fábula.
Para a guerra sem fim vale tudo. Vale a brutalidade autocrática do putinismo, mas vale também a EU esquecer as graves violações ao Estado de Direito por parte dos regimes polaco e húngaro; a NATO a prometer ao sultão Erdogan a extradição dos patriotas curdos exilados na Suécia e na Finlândia para a Turquia, em cujas prisões os espera a tortura e a morte; os senhores da guerra, ocultarem a violência crescente do Estado Hebraico sobre a Palestina martirizada, recentemente expressa no quase silenciado assassinato da jornalista Shireen Abu por balas israelitas; vale ainda para Biden vir pedir ao carniceiro Mohammed bin Salman da Arábia Saudita (sim, o que mandou cortar aos pedaços Jamal Khashoggi, seu opositor) que reduza os preços de petróleo, compensando a escalada inflacionista decorrente das sanções energéticas contra a Rússia e melhorando as apertadas hipóteses do seu partido nas eleições intercalares de Novembro nos EUA. Tudo gente e regimes de fino recorte liberal e “ocidental”.
só um grande movimento de opinião pública internacional pode impor duas exigências essenciais ao tempo presente: a imediata suspensão das hostilidades e o início de negociações entre a Rússia e a Ucrânia, onde este país possa intervir em plena autonomia na sua qualidade de Estado soberano e independente
Certo é que esta guerra sem fim vai ser dura e dramaticamente paga e sofrida pelas vítimas do costume. Desde logo pelos ucranianos, alvo primeiro da agressão putinista, mas de forma particularmente penosa pelos países pobres do Sul e pelos povos europeus com destaque para os do sul da Europa, a braços com pesadas dívidas soberanas e respetivos juros, cujas taxas começam já a disparar. O efeito em cadeia da crise energética, da escassez alimentar da espiral inflacionista, da desvalorização e cortes nos salários reais, das falências, do desemprego, do previsível agravamento fiscal com o aumento das despesas do rearmamento, prepara uma recessão profunda. A que se soma um retrocesso gravíssimo no combate à catástrofe climática e ambiental expresso no anunciado regresso por parte de alguns governos à exploração do carvão e à energia nuclear.
A avalanche de propaganda manipulatória dominante apela à conformação das populações face à tragédia do conflito, seja em nome da velha Rússia ou do dito “mundo livre”. A verdade é que essa cínica hipocrisia não parece capaz de deter a generalização da revolta contra o brutal agravamento das desigualdades provocado pela guerra. O levantamento no Siri Lanka pode ser o primeiro. Na realidade, só um grande movimento de opinião pública internacional pode impor duas exigências essenciais ao tempo presente: a imediata suspensão das hostilidades e o início de negociações entre a Rússia e a Ucrânia, onde este país possa intervir em plena autonomia na sua qualidade de Estado soberano e independente.
Artigo publicado no jornal “Público” a 19 de julho de 2022
