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Os saborosos milagres das contas do PS

As contas do PS demonstram que não haverá aumento relevante para a função pública, que algumas prestações sociais serão reduzidas, não se sabe como, que o programa de habitação não tem dinheiro suficiente e que o investimento público continuará medíocre.

Usando um truque que fala por si próprio, o PS só aceitou divulgar via Expresso quatro páginas com contas sobre o seu programa depois de terminado o debate entre António Costa e Catarina Martins. Depois das contas exaustivas apresentadas há quatro anos, este silêncio indica a preferência do Governo — evitar o escrutínio da maior das evidências: pouco acrescenta ao desolador programa de estabilidade apresentado em Bruxelas. Mas, talvez pior, há promessas inviáveis. Assim, a análise dessas contas pode iluminar alguns mistérios desse programa. Deixando para a próxima semana o programa do PSD, indico agora os quatro pontos que me parecem mais problemáticos nas contas do programa do PS.

Função pública a zero

O Expresso publicou em manchete há um par de meses que a primeira proposta do PS era aumentos na função pública. Com dez anos de perda de salário com o congelamento nominal, seria razoável. Depois, o programa eleitoral explicou que sim, mas só a partir de 2021 e só pela inflação, ou seja, os funcionários deixam de perder mas não têm ganhos reais. E chegou então Centeno na semana passada, que afinal podia ser já em 2020. Boa notícia, se houvesse aumento.

Só que não há dinheiro no programa. No programa de estabilidade são apresentadas as contas das despesas com pessoal, na rubrica da “evolução do número de trabalhadores, com particular ênfase na educação e na saúde, do aumento do salário mínimo, e de outras medidas com efeitos remuneratórios”, que contabiliza €95 milhões para 2020 (outro valor é acrescentado na rubrica que diz respeito só a progressões na carreira). Para um aumento à inflação prevista pelo Governo, 1,5%, faltam €250 milhões no próximo ano.

Mas perguntado de quanto seria o aumento, Centeno deu uma resposta misteriosa, congratulando-se com os “os dois meses consecutivos de taxa de inflação negativa”, salientando que, quanto a salários, “este é um bom indicador para 2020”. Ou seja, inflação baixa, aumento baixo. Que seja uma boa notícia termos deflação, é uma afirmação espantosa: significa recessão, e não percebo como Centeno festeja a notícia. Mas sendo duvidoso que Portugal entre já em recessão em 2020, como Centeno parece antecipar, faça-se o exercício de admitir, como pode vir a ser o caso, que haja uma inflação de 0,5%, quase nula, e que seja por essa bitola que o PS prepara as suas verdadeiras contas. Ainda assim, faltariam cerca de €115 milhões em 2020... para um aumento de €5 no salário de quem receba €1000.

Cortes nos apoios sociais

É uma velha insistência do PS: em 2015 tinha prometido congelar as pensões e retirar uns misteriosos €1020 milhões aos apoios sociais, nunca explicitando como, agora garante que “será reavaliada a aplicação da condição de recursos nas prestações não contributivas”. Boa notícia se fosse para retirar aos idosos pobres a obrigação de declararem o rendimento dos filhos, mas isso implicaria um sistema mais generoso e não um sistema de cortes como as contas indicam. O facto é que no programa de estabilidade está previsto um abatimento nesta despesa de €90 milhões em 2020.

Suspeito que chegaremos ao último dia da campanha eleitoral sem que o PS explique onde vai ser este corte, como e quantas pessoas vai afetar.

Muitas casas e pouco dinheiro

O programa eleitoral do PS tem “uma meta muita clara: erradicar todas as carências habitacionais até ao 50º aniversário do 25 de Abril, em 2024” (pág. 79). Erradicar todas as carências, uma linda proposta, mas nada de explicar como se dá o milagre. Agora, o estudo de impacto financeiro, as tais contas do PS, diz que isto será conseguido pela disponibilização de 25 mil fogos. Para definir esse objetivo, baseia-se, tal como o programa eleitoral, no estudo do oficialíssimo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), “Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional”, de fevereiro 2018 (pp. 51-2), que regista 25.762 famílias com necessidades habitacionais. Calcula o IHRU que resolver o problema, com uma conjugação de apoios para a compra de casa, arrendamentos, reabilitação e construção, custará €1.501.447.923,56. Este é, portanto, o cálculo do Governo, cerca de €1501 milhões.

O primeiro problema é que isto não basta. O problema da habitação é uma conjugação tóxica de pobreza, que vitima famílias que não têm casa, com gentrificação, que expulsa famílias e esvazia as cidades, transformadas em Disneylândias para o turismo, e com uma atuação implacável de um mercado baseado no poder financeiro, que faz disparar os preços e restringe o arrendamento. Se assim for, começar a resolver o problema da habitação exige um investimento elevado para aumentar a oferta, fazer baixar os preços do arrendamento, repovoar as cidades e restabelecer vida social local. Por isso, esta oferta não basta para “erradicar todas as carências”, pois as carências não são só de quem não tem casa ou a tem muito degradada, mas também dos jovens que querem sair de casa dos pais e não têm como pagar o aluguer, ou de quem vai trabalhar para outra cidade e não consegue alugar casa. Mas para o PS o valor exorbitante das rendas não é aqui relevante, só interessa a necessidade extrema e não o objetivo de condicionar o preço do mercado.

Ora, a proposta do PS para quatro anos nem consegue garantir o objetivo. No tal papelinho entregue aos jornalistas anuncia €600 milhões. Então a conta não bate certo, faltam €901 milhões, segundo o cálculo do próprio governo. O que Centeno disponibiliza não chega para metade do que o PS promete aos eleitores.

Além disso, no debate com Catarina Martins, António Costa questionou os cálculos do IHRU (em que se baseia o seu próprio programa) e sugeriu que o preço médio por fogo poderia ser de €113 mil, a partir de um exemplo de construção em Almada (a comparação é estranha, dado que o IHRU não propõe que os seus quase 26 mil fogos sejam só de construção, apresentando antes cálculos para uma grande maioria de habitações a reabilitar, portanto a preço mais baixo). Em todo o caso, se Costa eleva o seu valor de referência, as suas 26 mil habitações custariam mais de €2900 milhões. E então faltam-lhe €2300 milhões, Centeno só lhe dá €600 milhões. Assim, o que nos está a dizer é que não cumprirá sequer um quarto do objetivo que anunciou, por mais pomposa que seja a promessa de “erradicação de todas as carências” habitacionais até à última badalada do 50º aniversário do 25 de Abril.

A miragem do investimento público

A outra notícia de Centeno foi que o investimento público duplicaria, considerando um prazo mal definido. Outra boa notícia. Mas não há dinheiro, que palavra é que não percebeu? A conta não está certa, mais uma vez.

No programa de estabilidade são previstos aumentos do investimento público de €460 milhões por ano, em média. As contas agora apresentadas pelo PS acrescentam €200 milhões anuais. Deste modo, o investimento público aumentaria cerca de 52% em termos nominais. Daí a duplicar vai uma grande diferença. O problema, no entanto, é que isso pode ser irrelevante, dado que os valores orçamentados nunca são cumpridos.

Para 2019 estava no orçamento um gasto de €5957 milhões em investimento público, mas o programa de estabilidade reduziu o compromisso para €4378 milhões. Ou seja, menos de metade do que é a média histórica das últimas décadas, em termos de peso no PIB. Só que, entre 2016 e 2018, o Governo não executou €2940 milhões do investimento público que estava orçamentado. Mesmo com os mais €200 milhões sugeridos pelo PS naquela sexta-feira à noite, o orçamento de 2019 só seria alcançado em 2022. E continuaremos abaixo da média histórica ou seja, com um investimento público cuja contração passou a ser a variável de ajustamento orçamental. Um erro colossal.

Pois é, contas certas são preferíveis. Mascarar os problemas que são difíceis é sempre a pior alternativa. Ora, as contas do PS demonstram que não haverá aumento relevante para a função pública, que algumas prestações sociais serão reduzidas, não se sabe como, que o programa de habitação não tem dinheiro suficiente e que o investimento público continuará medíocre. Ou seja, depois do entusiasmo com a viragem contra a austeridade da troika, o PS oferece quatro anos de estagnação. Percebo porque é que precisa tanto do poder absoluto.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 14 de setembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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