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Os privados, a ADSE e o SNS

A chantagem dos privados serve para tirarmos outras lições, num momento em que se debate a Lei de Bases da Saúde.

Agora que os principais grupos privados do setor da saúde – Mello Saúde, Luz Saúde, Lusíadas Saúde, H. P. do Algarve e Trofa Saúde – se alinharam para chantagear a ADSE com a suspensão das convenções, já podemos falar na existência de um cartel organizado?

A ADSE foi criada em 1963 como um sistema de saúde para os funcionários públicos e manteve a sua existência mesmo depois da criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Ao contrário do que dizem, não é um seguro de saúde pago pelo Estado aos seus trabalhadores. Há vários anos que é paga inteiramente pelos contributos dos seus beneficiários (trabalhadores ou aposentados da Administração Pública) e, ao contrário dos seguros de saúde, tem um modelo solidário: os descontos para a ADSE são proporcionais aos rendimentos (3,5% da remuneração) e são isentos os titulares das pensões mais baixas.

O acesso dos beneficiários aos cuidados de saúde pode ser feito de duas formas distintas: pelo recurso a prestadores convencionados, cujo pagamento dos serviços é feito diretamente pela ADSE, ou pela livre escolha no mercado, existindo um reembolso ao pagamento adiantado. Em qualquer um dos casos, eram aplicadas as tabelas gerais de custos que a ADSE define e na qual se baseia para os reembolsos ou pagamentos.

Em 2009, por reivindicação dos grupos privados, a ADSE substituiu o modelo das tabelas gerais para os custos relacionados com cirurgias em ambulatório e cirurgias com internamento, passando os privados a definir livremente os preços destes atos cirúrgicos. Posteriormente e numa base anual, seria realizado um acerto de contas, sendo devolvido o pagamento em excesso quando os preços praticados fossem superiores à média em 10%. Entre 2011 e 2014 este processo de regularizações decorreu normalmente, tendo os grupos privados devolvido à ADSE cerca de 4,9 milhões de euros.

Para uniformizar as tabelas e as práticas, foi feita uma revisão profunda dos procedimentos em 2014, alargando o processo das regularizações aos medicamentos oncológicos e às próteses intraoperatórias. Esta mudança foi aceite pelos grupos privados sem contestação.

No início de 2018, a Associação de Hospitalização Privada interpôs uma providência cautelar contra as regularizações, alegando a sua ilegalidade. Isso aconteceu quando foi apurado que os privados deveriam devolver 38 milhões de euros à ADSE. Essa providência cautelar não teve provimento e, no final de 2018, a Procuradoria-Geral da República (PGR) emitiu um parecer que reconhecia a legalidade das regularizações. A afirmação da PGR é taxativa: “Os métodos de regularização dos pagamentos, são não só legais, como exigíveis em obediência aos princípios que regem a atuação da ADSE, IP.”. Não é só uma obrigação para os privados, é mesmo uma exigência legal para a administração da ADSE, que está obrigada a combater a sobrefaturação.

Os factos são claros. Não existe uma guerra da ADSE contra os prestadores privados. Existe apenas o cumprimento da lei por parte da administração da ADSE e uma tentativa de lhe fugir por parte dos grupos privados.

As disparidades de preços praticados mostram bem a dimensão da gula. O preço de um medicamento utilizado no combate ao cancro da mama (Trastuzumab) variou entre 1495 euros e 2169 euros, o preço do Osimertinib (usado para combater o cancro do pulmão) variou entre 274 euros e 8040 euros, há próteses cujo preço varia entre 2458 euros e 11.726 euros. Os grupos privados andaram a meter a mão na ADSE e agora foram descobertos.

A chantagem dos privados sobre a ADSE, claramente combinada entre eles, pretende instrumentalizar os beneficiários deste subsistema na sua guerra pelo lucro. Não olham a meios na procura de uma posição negocial que evite a devolução do dinheiro e garanta novas tabelas de preços que mantenham o abuso.

A chantagem dos privados para manter a sobrefaturação serve para tirarmos outras lições, particularmente num momento em que se debate a Lei de Bases da Saúde. Nas escolhas determinantes que temos pela frente, são argumentos acrescidos para garantir um SNS público e universal que não fique refém dos interesses privados.

Artigo publicado no jornal “Público” a 15 de fevereiro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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