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Os números que ninguém sabe

Se há momento evidente em que os números de infecções com covid não só não são exactos, como estão muitíssimo abaixo da realidade, é este.

Os exercícios de adivinhação sucedem-se. Se há momento evidente em que os números de infecções com covid não só não são exactos, como estão muitíssimo abaixo da realidade, é este.

Curiosamente, como no passado, não assistimos ao desfile de negacionistas ou de elementares agentes da iniciativa económico-liberal a contestar números e percentagens. Agora, quando os números são mera numerologia ou uma espécie de ciência oculta, a desobrigatoriedade das máscaras em espaços fechados faz o seu serviço e deixa auto-satisfeitos e felizes os arautos da falta de empatia. É só mais uma gripezinha, dizem. E será. Quando for. Entretanto, os números da mortalidade continuam altos, a pressão hospitalar aumenta, muitos dos serviços médicos têm boa parte dos seus profissionais doentes e sem poder trabalhar, sectores económicos (como a restauração) pedem o regresso das máscaras nos seus espaços, o almirante Gouveia e Melo diz-se disponível para uma nova "task force", o país assiste sem mexer a uma explosão de novos casos todos os dias. Para aqueles que se convenceram que o "novo normal" já tinha chegado, está mesmo tudo normal. Para alguns, basta não sentirem uma máscara na cara para tudo estar bem. Para outros, basta que não se fale em vacinas e novas doses. Como estaríamos, agora, se o anterior Governo minoritário de António Costa se comportasse como o novo Governo maioritário de António Costa?

A ausência de reacção de Marta Temido ao aumento exponencial de infecções é um acto político e não de saúde pública. Contrasta em absoluto com os cuidados apurados (e, em determinados momentos, até excessivos) que revelou no passado. Perante os números actuais, já é difícil compreender que o abandono das máscaras em espaços fechados com grande concentração de pessoas tenha sido mantido até agora, sem um piscar de olhos. Mas é inaceitável este entendimento, quando se suspeita que a esmagadora maioria dos novos casos de covid nem sequer consta dos números oficiais, já que boa parte das pessoas - sobretudo à custa da extraordinária adesão às vacinas - apresenta sintomas ligeiros ou se encontra assintomática, não se declarando oficialmente com covid. A gravidade da doença é, obviamente, menor mas a transmissibilidade aumenta. A linha SNS24 está a rebentar pelas costuras, mas só não explode porque a maioria das pessoas nem sequer liga.

Portugal abandonou a maioria das restrições em Fevereiro e deixou de considerar a máscara como obrigatória quando a mortalidade estava acima do limiar de 20 por milhão de habitantes a 14 dias, como definido pelo Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças (ECDC). Este ano, temos cerca de 20 vezes mais casos e quase 5 vezes mais óbitos do que no mesmo período do ano passado (Abril assistiu a cinco vezes mais mortes do que em Abril de 2021). A taxa de letalidade é menor mas continua a morrer muita gente. Demasiada gente. Não são necessários isolamentos, nem a economia tem de fechar para que haja coragem de voltar atrás, maior contenção e alguma empatia.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 20 de maio de 2022

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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