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Os novos apoios extraordinários e o futuro da Segurança Social

Ao mesmo tempo que é preciso criar medidas que respondam à urgência, não deveríamos começar já a desenhar o sistema para uma resposta robusta ao mundo do trabalho que efetivamente temos? O objetivo deste texto é dar um pequeno contributo para esse debate.

Os efeitos da crise pandémica no emprego tornaram mais evidentes aspetos com grandes implicações para a segurança social, mas também a sua importância e papel insubstituível. Hoje, dia 8 de maio, é o Dia Mundial da Segurança Social. Um bom pretexto para, no meio do momento conturbado que vivemos, retirarmos algumas lições para o futuro. Ao mesmo tempo que é preciso criar medidas que respondam à urgência e não deixem ninguém desamparado, não deveríamos começar já a desenhar o sistema para uma resposta robusta ao mundo do trabalho que efetivamente temos? O objetivo deste texto é dar um pequeno contributo para esse debate.

Três constatações sobre o que se passa e consequências que devíamos tirar para o futuro

As consequências da crise pandémica e das respostas sanitárias expuseram algumas das características e das principais fragilidades da nossa economia e do nosso sistema de relações laborais, com consequências diretas na proteção social.

A primeira evidência que ficou ainda mais clara com esta crise é que a precariedade tem um efeito pesado não apenas na compressão salarial e na desarticulação das formas de organização dos trabalhadores, mas também na desproteção social

A primeira evidência que ficou ainda mais clara com esta crise é que a precariedade tem um efeito pesado não apenas na compressão salarial e na desarticulação das formas de organização dos trabalhadores, mas também na desproteção social. O desemprego começou por atingir, como seria de esperar, os trabalhadores precários - em período experimental, contratos a termo, contratos de trabalho temporário, a recibos verdes. Muitos destes trabalhadores não têm acesso ao subsídio de desemprego por não terem o contrato de trabalho que deviam ter (caso dos falsos recibos verdes) ou por não terem o número de dias de descontos suficientes (casos de muitos trabalhadores em período experimental, ou dos intermediadas por empresas de trabalho temporário, por exemplo).

A segunda constatação é relativa aos efeitos do peso da economia informal, que vale mais de 25% da economia, ou da riqueza produzida em Portugal, e que significa, como agora resulta claro, desproteção total em caso de despedimento ou de quebra de atividade. No trabalho doméstico e nos biscates na área do turismo, no setor do alojamento ou da restauração, a ausência de contratos é muitas vezes vendida como uma forma de se poupar em impostos e contribuições, procurando até persuadir os trabalhadores das suas supostas "vantagens" a curto prazo. Quando a crise chega, vê-se quem paga essa poupança. Ao patrão, a informalidade não faz qualquer diferença e é conveniente, mas o preço é pesado para o trabalhador que fica sem qualquer apoio, por não ter tido qualquer contribuição.

A terceira constatação tem a ver com as limitações dos próprios regimes específicos de segurança social, para além do regime geral. A situação dos trabalhadores independentes (mais de meio milhão em Portugal), uma parte dos quais excluídos de apoios e outros com prestações muitíssimo baixas; a situação de advogados e solicitadores (mais de 30 mil), cuja Caixa de Previdência própria não lhes garante nenhuma proteção além da reforma; a situação das trabalhadores do serviço doméstico (cerca de 100 mil no nosso país), cujo regime próprio de enquadramento na Segurança Social as priva de facto de proteção no desemprego; a situação dos sócios gerentes, que estavam inicialmente excluídos de apoios, são todas elas reveladoras de que alguma coisa tem de ser feita neste domínio.

Destas contratações podem ser retiradas lições práticas, que nos levem a aprofundar a capacidade de resposta do sistema público de segurança social. Identifico duas que me parecem ser centrais.

A primeira é a necessidade de respostas imediatas para: i) facilitar acesso ao subsídio de desemprego (e ao subsídio social de desemprego), reduzindo os prazos de garantia; ii) reforçar a abrangência e o valor dos apoios aos trabalhadores independentes; iii) criar uma nova prestação capaz de garantir um mínimo de rendimento aos trabalhadores excluídos dos outros apoios, como as trabalhadoras domésticas, intermitentes, advogados e solicitadores ou trabalhadores informais. Tem sido sobre isso que se tem feito o debate com o Governo, que se têm multiplicado propostas e petições por parte de grupos de precários e intermitentes, e é também sobre esta dimensão que o Parlamento debaterá em breve de um subsídio de desemprego excepcional que foi apresentado pelo Bloco.

A segunda consequência deveria ser começarmos a fazer desde já, e para o futuro, um desenho mais inclusivo do sistema, capaz de trazer para dentro dele todos os trabalhadores, o que implicaria aproveitar esta oportunidade para: i) combater firmemente a precariedade que leva à desproteção; ii) tornar mais abrangente e robusto o sistema de proteção dos recibos verdes; iii) combater a manipulação legal e o engodo que foi transformar trabalhadores em empresas (como acontece na economia das plataformas), desprotegendo-os enquanto trabalhadores e sobrecarregando-os de obrigações enquanto “empresários-precários”; iv) trazer para dentro do regime geral da segurança social grupos com regimes próprios de descontos que não garantem níveis adequados de proteção, como advogados ou trabalhadoras domésticas; v) aproveitar esta oportunidade para combater o trabalho informal, não perseguindo os trabalhadores, mas atraindo-os para o sistema e combatendo as estratégias patronais que beneficiem e lucram com essa informalidade.

As novas medidas do Governo: pequenos passos e uma escolha estranha

O Governo fez hoje publicar algumas medidas para, como foi anunciado, responder a sócios-gerentes, trabalhadores informais e recibos verdes que até aqui estavam sem apoio. As medidas dão um pequeno passo na direção certa. Mas além das insuficiências óbvias nos seus valores, também criam situações perversas nalguns casos, revelando escolhas estranhas que não parecem querer aproveitar este momento para fazer o que seria necessário.

Primeiro comentário às propostas do Governo: é positivo e correto reduzir o prazo de garantia do subsídio social de desemprego. Mas não seria de fazer o mesmo com o subsídio de desemprego propriamente dito? E onde ficam as trabalhadoras domésticas com vários empregadores, que descontam mas não têm acesso ao subsídio de desemprego? Não seria o momento de as incluir aqui? É defensável que continuem a ser tratadas como trabalhadoras de segunda no que à lei laboral e à proteção social diz respeito? E como se articula o alargamento da proteção no desemprego (que imputa custos de rotatividade à Segurança Social) com o combate ao abuso dos contratos a termo?

Segundo comentário: o governo fez finalmente o que há já dois meses era óbvio, que é deixar de excluir do apoio extraordinário os trabalhadores independentes que estavam no primeiro ano de atividade, ou os que a fecharam logo a seguir ao início da pandemia. Mas atribuir-lhes um valor máximo de 219,41€ (meio Indexante de Apoios Sociais) é razoável? Quem pode viver com um valor desses, menos de metade do limar de pobreza? Esta condenação à pobreza não contribuiu para descredibilizar o próprio esforço do sistema de proteção social junto dos trabalhadores?

Terceiro comentário: é positivo abranger empresários em nome individual e sócios-gerentes de micro-empresas nos apoios. Pergunto-me contudo se não deveríamos, em paralelo, fazer um diagnóstico sobre quem são e ter um plano que não empurrasse trabalhadores de plataformas e uma parte dos trabalhadores das artes, por exemplo, a constituírem-se como empresas, sempre que de facto não o sejam (e, no caso das plataformas, raramente o são).

Quarto comentário: o novo apoio aos trabalhadores informais, muitas vezes os mais explorados, é bizarro no valor, no enquadramento criado e no método com que lida com a informalidade. No valor, porque os 219,41€ por mês que foram definidos, numa duração máxima de dois meses, não dá para sobreviver. No enquadramento porque a opção de pôr estes trabalhadores no regime dos independentes é estranha, não só porque possivelmente a maior parte deles não serão trabalhadores independentes, mas trabalhadores por conta de outrem sem contrato, mas ainda porque esta opção política introduz um novo enxerto ao regime dos independentes, em vez de assumir que esta é, claramente, uma prestação de solidariedade, paga pelo Orçamento do Estado, e não uma espécie de prestação contributiva por empréstimo. Finalmente, é uma opção bizarra no método. Este seria o momento para criar uma prestação que atraísse os trabalhadores informais e, por via de uma declaração sob compromisso de honra sobre qual era a sua situação anterior, conseguir fazer um mapeamento e um diagnostico inédito sobre a realidade do trabalho informal, acionando depois um plano, económico e inspetivo, para o combater. Contudo, a medida do Governo constitui de facto um empréstimo aos trabalhadores informais, que eles terão de pagar em 24 prestações, sem fazer nenhum levantamento sobre as razões e a origem da informalidade. Esta opção, apresentada como uma forma de “vincular os trabalhadores ao sistema”, é no mínimo retorcida. Parece partir do princípio que as pessoas não têm proteção social por opção, não aproveitando para conhecer aprofundadamente as características e causas dessa informalidade. Assim, ficciona, para efeitos deste novo apoio, que elas eram trabalhadores autónomas, sem um empregador que estivesse na origem desta situação (o patrão desparece da equação), eximindo-se assim de criar, a partir dela, um verdadeiro plano de combate ao trabalho informal. Esse plano seria uma das respostas importantes para, justamente, defender a Segurança Social no futuro.

Artigo publicado em expresso.pt a 8 de maio de 2020

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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