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Os nómadas digitais e os que carregam a casa às costas

O Governo pretende atrair mais “nómadas digitais”, mas são os locais que nas cidades portuguesas se viram obrigados a carregar as suas tralhas de porta em porta. Bem-vindos ao regime do Socialismo Summitismo.

Na sua habitual visita anual à Web Summit, o Governo, pelas palavras de António Costa, abriu a porta ao fim dos Vistos Gold. Nas suas palavras, “provavelmente já cumpriram a sua função”. Se é promessa para cumprir ou não, cá estaremos para ver. Importa, neste momento, fazer um balanço. Afinal, que função foi essa? O que, durante o período da Troika, o então Governo da Direita criou foi um regime de privilégio para os mais ricos dos ricos poderem literalmente comprar a sua nacionalidade portuguesa se investissem em imobiliário a preços que qualquer trabalhador a ganhar um salário médio em Portugal não conseguiria comportar. Ou seja, num dos períodos mais duros da para a classe trabalhadora portuguesa, com cortes reais nos salários e pensões, desmantelamento de serviços públicos, aumento do custo de vida em todas as suas esferas, a Direita liderada por Passos Coelho entendia que a economia precisava de se abrir à especulação imobiliária, com tudo o que de mais pernicioso isso traz consigo. Era Portugal no mundo novamente, desta feita sob o lema da flexibilidade e da globalização.

Num país onde a percentagem de resposta pública de habitação não sai dos 2%, a prioridade foi incentivar o mercado imobiliário (núcleo central da crise do capitalismo de 2008) a tornar-se num passaporte para negócios de magnatas na União Europeia, com porta de entrada no nosso país. O balanço é efetivamente nefasto. A criação de emprego com a criação dos vistos gold é uma miragem, mas os casos de circulação de dinheiro de origem desconhecida através deste mecanismo dos vistos gold tornaram a nossa economia um oásis de lavagem de dinheiro daqueles que, hoje, o status quo liberal diz querer combater por serem, por exemplo, alguns dos financiadores russos da invasão que Putin à Ucrânia.

A receita do Partido Socialista não anda longe da ideia ultraliberal de Passos Coelho e seus parceiros. Quando, no meio do aumento brutal do preço das casas e do arrendamento, atirando milhares de estudantes para a rua, famílias desalojadas pelos seus senhorios porque o negócio do alojamento local é mais apetitoso, António Costa entende que é prioridade nacional criar mais um regime de privilégio, baseado em benefícios fiscais, para uma classe sócio profissional a que se entendeu apelidar de “nómadas digitais”. As cidades não esticam e quem quer estudar, trabalhar e viver nelas enfrenta hoje a fúria do mercado imobiliário que não só especula sobre os preços como é aplaudido pela sua astúcia através de incentivos fiscais dos Governos para prosseguir com tal façanha.

Pretende atrair mais “nómadas digitais”, mas são os locais que nas cidades portuguesas se viram obrigados a carregar as suas tralhas de porta em porta. Na cidade, os estranhos somos nós. A maioria da geração que experimenta, nos dias de hoje, a transição entre os estudos e o primeiro emprego vivem tempos árduos. Dilemas de vida e insatisfações que não encontram soluções num Governo que tem Socialista no nome e Liberal na atuação. Bem-vindos ao único regime do mundo que é apelidado de socialista e acarinhado pelo modelo económico projetado na Web Summit, pelos magnatas dos vistos gold, pelas empresas que criam sedes fiscais no estrangeiro para não pagar impostos, pelos acordos com os patrões para manter baixos salários.

Sobre o/a autor(a)

Museólogo, Investigador do CITCEM UP
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