Quando vemos a actividade económica a entrar numa recessão prolongada como a que atravessamos, tendemos a pensar que este é o pior momento para investir. Mas há quem lucre no meio da crise e há mesmo quem lucre com a crise.
Desde logo, lucram com a crise as empresas que vivem de salários baixos. Uma empresa que pretenda baixar os salários e despedir trabalhadores pode aproveitar o aumento do desemprego para o fazer. Uma empresa que viva de vendas pode até oferecer falsos empregos, pagos à comissão, e assim albergar nos seus quadros todos os desempregados que se candidatarem, dado que não tem de lhes pagar salário. Quando vemos a Remax a comprar espaço publicitário para anunciar a oferta destes falsos empregos, sabemos que a situação do país é grave.
É certo que estas empresas também terão menores receitas mas acabam por sair a ganhar se a crise não for suficientemente profunda e duradoura para as arrasar. O mesmo se pode dizer das empresas que vivem da pobreza.
Esse é o caso das instituições financeiras que oferecem créditos sem garantias a juros proibitivos. Este pode ser um negócio extremamente lucrativo, realizado à custa de quem se vê numa situação desesperada e pede um crédito para pagar despesas correntes (como o regresso às aulas ou uma cirurgia), sem saber se vai conseguir pagá-lo no futuro.
Mas talvez o melhor exemplo de quem lucra com a crise seja dado pelos “fundos abutre”. Criados nos anos 90, estes fundos têm como finalidade comprar dívida de países em dificuldades financeiras a um preço tão baixo quanto possível. Como se tratam de títulos que ninguém quer (o “lixo”, segundo as agências de rating), é possível adquiri-los a um valor que pode ser tão baixo quanto 10% do seu valor nominal. Depois de comprarem os títulos de dívida, os “fundos abutre” usam os tribunais para exigir que 100% do valor da dívida seja pago, assim como os juros e os custos judiciais.
Para se certificarem de que conseguem um reembolso da dívida, os abutres (sem aspas) escolhem como alvo países que estão prestes a obter um perdão parcial da sua dívida ou ajuda externa. Assim, os abutres conseguem a proeza de retirar dos países pobres as migalhas que estes obtiveram com os programas de ajuda ao desenvolvimento.
Os “fundos abutre” ficaram tristemente famosos em 2007, quando um destes fundos conseguiu que um tribunal decretasse que a Zâmbia teria de lhe pagar 42 milhões de dólares por uma dívida que havia adquirido por 4 milhões, num caso muito mediatizado. A dívida era claramente odiosa, já que dizia respeito a uma compra de tractores pela ditadura zambiana à ditadura romena em 1979, cujo valor não foi pago porque a maioria dos tractores eram defeituosos.
A decisão foi controversa, de tal forma que até o juiz responsável criticou a lei que a legitimava, e o assunto acabou por ser alvo de discussão na reunião do G8. Na cimeira, contudo, a discussão foi bloqueada pelo Secretário do Tesouro dos EUA, Henry Paulson. Nada de surpreendente, tendo em conta que Paulson é um homem forte do gigante financeiro Goldman Sachs, tendo sido um dos principais arquitectos da desregulação do sistema financeiro que nos trouxe a crise, e que o criador dos “fundos abutre”, Paul Singer, foi o maior contribuidor para a campanha do então presidente George Bush.
Até hoje, apenas o Reino Unido baniu os “fundos abutre”, em 2010. Mas o gesto tem um impacto pouco mais que simbólico, tendo em conta que a proibição não abrange os territórios ultramarinos, onde se situam muitas offshores, e só se aplica aos 40 países mais pobres e que a maioria das litigações levadas a cabo pelos abutres tem lugar nos EUA. Este foi o resultado da pressão exercida pelos grupos que integram a Jubilee Debt Campaign1, que tem sido muito eficaz na denúncia da indecência que rodeia estes negócios, e que agora exige uma mão mais dura sobre os abutres.
A campanha contra os “fundos abutre” é da maior relevância não apenas para os países menos desenvolvidos mas também para os países europeus que estão em risco de não pagar a dívida. Desde Abril deste ano que vários “fundos abutre” têm adquirido dívida grega a metade do seu valor e será provavelmente uma questão de tempo até que outros países, como Portugal e Itália, sejam também vítimas dos abutres. Sem uma regulação do sector financeiro que restrinja a actividade dos abutres, a recuperação destes países será ainda mais difícil e ainda veremos os especuladores a lucrarem com a crise que criaram.
