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Offshores são o expoente de uma economia sem escrúpulos

Os offshores não são regimes legítimos abusados por pessoas sem escrúpulos. São o expoente de uma economia sem escrúpulos que põe em causa a legitimidade das sociedades democráticas e das regras que estas livremente constituem.

Provavelmente saberão da existência de uma famosa personagem de filmes de animação chamada Dori. A Dori é, na verdade, um peixe que sofre de perda de memória de curto prazo que lhe confere uma admirável capacidade de se surpreender uma e outra vez com a mesma coisa.

O paralelo é óbvio, já que também nós vivemos cada escândalo financeiro como se fosse o primeiro, e a cada novo baque surpreendemo-nos: Olha! Um offshore!

Foi assim no BPN, no BPP, no BCP, no Finantia, no BES, no Swiss Leaks, no Luxemburgo Leaks e no Panamá Papers. Andamos nisto há pelo menos uma década e a verdade é que nada de verdadeiramente transformador foi feito, aqui ou nas instâncias internacionais, nada que cortasse o mal pela raiz. E como não vivemos num mundo de peixinhos coloridos, mas sim de tubarões, a inação política tem um significado e uma interpretação.

A primeira desculpa para a inação política é a ideia de que, regra geral, os offshores - e tudo o que circula à volta deles - teriam um propósito legítimo mas são abusados por pessoas sem escrúpulos. É um equivoco.

Para começar, porque a avaliação moral é puramente subjetiva. Veja-se o caso de Dias Loureiro. Para muita gente Dias Loureiro, que esteve envolvido no assalto do BPN, é um empresário pouco recomendável. Para o anterior primeiro ministro Passos Coelho, é um exemplo de tenacidade e exigência. Assim, não há um critério claro para o que seria uma utilização benigna de um offshore.

Mas a avaliação moral é equívoca sobretudo porque, num sistema que vive de explorar as margens da lei, é muito difícil distinguir o planeamento da evasão, as técnicas de competição da manipulação de mercado, a otimização fiscal da fraude, e isto tudo do branqueamento.

Os offshores existem para que pessoas e empresas possam contornar legislações nacionais, e não há nenhuma virtude nisso.

A segunda desculpa para a inação política é a banalização de muitas destas práticas, que passaram a ser consideradas parte aceitável do normal funcionamento do mundo dos negócios. É por este motivo que as administrações das maiores empresas portuguesas, como a EDP ou a Jerónimo Martins, continuam a gozar de prestígio e respeitabilidade apesar de, numa opção inteiramente egoísta e prejudicial para o país, manterem sedes fiscais na Holanda ou no Luxemburgo.

E valerá a pena recordar aqui um momento memorável da comissão de inquérito ao BES: Luís Horta e Costa tinha sido chamado para falar como administrador da ESCOM e resolveu finalmente explicar o destino da comissão de 16,5 milhões, paga pelo consórcio alemão na compra dos submarinos. Do dinheiro distribuído sobravam 6 milhões e desconfiava-se que tinham terminado a pagar a compra de decisores políticos. Quando Horta e Costa esclareceu, ouviu-se na sala um suspiro de alívio: afinal o dinheiro não tinha sido para corrupção, mas apenas para pagar a montagem de um esquema de fuga ao fisco. Para isso, disse ainda, fizeram uso de uma lei aprovada na Assembleia da República - o Regime Excecional de Regularização Fiscal. Só desde 2010, houve em Portugal três destas amnistias fiscais, que permitiram lavar legalmente quase 6.000 milhões de euros. E tudo isto é considerado “banal”.

O orgulho e a desfaçatez com que Horta e Costa relatou a forma como fugiu ao fisco é equiparável às declarações do presidente da Google a comentar o facto de a empresa usar as Bermudas para reduzir ao mínimo a sua fatura fiscal na Europa. E cito: “estamos muito orgulhosos da estrutura que montámos ... chama-se capitalismo”. É caso para perguntar: O dono da Google é um empreendedor ou um criminoso? Serão estas operações simples otimização fiscal ou clara fuga aos impostos? Não sabemos, mas estamos certos de uma coisa: a tudo isto chama-se capitalismo.

Não nos desviemos do elenco das desculpas para a inação política. Para além do argumento moral e da banalização do abuso, existe ainda um terceiro argumento: o da impotência. Somos sempre demasiado pequenos e insignificantes para mudarmos, de facto (“sozinhos”, acrescenta-se sempre), alguma coisa. Fácil é compreender que deixar este assunto à espera de condições de coordenação internacional é a melhor garantia que ele nunca será resolvido.

Portugal não será parte da solução se mantiver a atitude hipócrita de dizer que está disponível para ser parte da solução, mas só quando todos os outros também estiverem. Contribuiremos, sim, para a solução quando esgotarmos todo o potencial que a nossa lei concede para combater estas práticas. Então, vamos a isso. Há, para já, duas coisas a fazer.

Em primeiro lugar, é preciso blindar a lei contra o abuso e impor transparência. É nesse sentido que vão algumas das propostas que apresentamos, como a eliminação dos títulos ao portador, a obrigatoriedade de divulgação das transferências para offshores, ou a criação de regras muitíssimo mais exigentes quanto a cláusulas utilizadas no planeamento fiscal. É verdade que não podemos impedir a existência de offshores fora do nosso território, mas podemos dificultar a sua utilização.

É urgente, em segundo lugar, dar o exemplo. Dar o exemplo é assegurar que temos um Estado livre de offshores. Dar o exemplo é garantir que não há dinheiro a sair de Portugal para offshores que integram a lista negra. Dar o exemplo é, ainda, acabar com o abuso no Centro Internacional de Negócios da Madeira.

Não vale a pena alimentar anátemas nem embarcar em chantagens que não servem para mais do que manipular as preocupações dos madeirenses. O que está em causa não é a existência de benefícios fiscais à instalação de empresas na RAM. O que está em causa é o abuso declarado e escancarado deste regime para práticas de fraude e opacidade. Senão vejamos:

O atual regime do Centro Internacional de Negócios da Madeira já prevê a criação de postos de trabalho como condição de acesso aos benefícios fiscais. É isso, aliás, que permite que se continue a dizer que o objetivo é fomentar o emprego na região. Mas acontece que essas condições são minimais e, ainda assim, a lei não garante o seu cumprimento.

Basta uma pequena pesquisa para expor o que verdadeiramente se passa da Madeira. Comecemos, por exemplo, pela empresa que, em 2014, mais benefícios fiscais arrecadou: a Saipem - Comércio Marítimo, Sociedade Unipessoal Lda, uma filial da gigante italiana com o mesmo nome.

Em Portugal esta empresa não tem um site, mas ele existe para a empresa-mãe, que reporta o número de postos de trabalho criados: 4.952 em Itália, 2.307 em Angola, 426 no Congo, 4.380 na Nigéria, 1.094 no Azerbeijão e, já se está mesmo a ver, nem uma referência a Portugal ou à Madeira. O que se encontra, em vez disso, e depois de alguma pesquisa, são os nomes dos diretores italianos da Saipem em Portugal. Um deles, o sr. Giuseppe Sofra, é ainda o gerente de mais três empresas, todas localizadas no 3.º H, do número 30, da Avenida Arriaga: a LNG - Serviços e gestão de projetos; a TSKJ - serviços de engenharia, e a TSKJ2 - construção internacional, sociedade unipessoal. O site de pesquisa encontra mais 130 registos na mesma morada, mas foquemo-nos nestas três. Outra rápida pesquisa e chegamos ao site do Banco Africano de Desenvolvimento, que nos conta que estas três sociedades localizadas na Madeira foram condenadas por atos de corrupção na Nigéria na negociação de contratos de exploração de gás entre 1995 e 2004.

A história que acabaram de ouvir resulta de uma pesquisa de duas horas a partir do primeiro nome da lista de empresas a quem estamos a conceder benefícios fiscais enquanto se sucedem discursos moralistas e juras de que aprendemos a lição sobre os “papéis do Panamá”.

O que o Bloco propõe quanto ao CINM é, tão simplesmente, manter um benefício fiscal de IRC mas apenas para as empresas que criem emprego de facto. Emprego comprovado, a tempo inteiro e com contrato. Não era esse afinal o propósito deste regime? O que propomos ainda é acabar com as isenções de impostos sobre os lucros distribuídos. Se o objetivo é favorecer as empresas geradoras de emprego, então não há razão para darmos borlas aos seus acionistas. Finalmente, queremos mais transparência e exigência na informação sobre o Centro Internacional de Negócios da Madeira.

Se os deputados do PSD, do CDS e do PS consideram que o que propomos é pouco razoável, ou um ‘disparate ideológico’, então é porque perderam de facto a capacidade de distinguir a atividade económica legítima do abuso total. E assim voltamos ao início.

Os offshores não são regimes legítimos abusados por pessoas sem escrúpulos. São o expoente de uma economia sem escrúpulos que põe em causa a legitimidade das sociedades democráticas e das regras que estas livremente constituem. Os offshores são perigosos para a economia e são perigosos para a democracia. Por isso merecem o combate mais feroz.

E isto, a menos que os decisores políticos, os legisladores e os governantes, prefiram continuar a portar-se como a querida Dori, sempre a espantar-se de novo, sempre como se fosse a primeira vez: Olha! Um offshore!

Intervenção no debate potestativo do Bloco de Esquerda sobre offshores, fuga ao fisco e branqueamento de capitais - 9 de junho de 2016

Mariana Mortágua: “Os offshores são perigosos para a economia e são perigosos para a democracia.”

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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