Não sei como tudo começou, nem sei se verdadeiramente interessa. O caminho para a formação das nossas opiniões e valores nem sempre é linear. Moldamos a vida e por ela somos moldados, há coisas que controlamos e muitas outras que nem sequer conseguimos influenciar. Não sou diferente.
Mas as memórias ajudam a explicar a intuição, aquela opinião que ainda não é raciocínio, que é mais profunda. Diz o dicionário que a intuição pode ser um “pressentimento da verdade”, neste caso das nossas verdades, construídas ao longo dos nossos caminhos.
A minha primeira memória política é a de agarrar uma bandeira na campanha presidencial de Maria de Lourdes Pintasilgo. Ainda havia a moda das caravanas e eu, muito miúdo, à janela do carro, fazia das tripas coração para segurar a bandeira, para não a deixar cair. Erguer as bandeiras, resistir às adversidades, aos ventos contrários, percebo agora a força dessa memória.
O ativismo é um ato de amor e de indignação. Pelo menos, assim o é no meu caso. O amor que vence a indiferença, àqueles com quem partilhamos vidas, com quem convivemos, cujas dores sentimos como se fossem nossas porque somos feitos da mesma matéria. E a indignação contra quem nos faz sofrer, quem nega o futuro que merecemos, contra o sistema que perpetua a desigualdade e o atraso. Foi esse ativismo que me envolveu cada vez mais, que se tornou tão banal e indispensável como a respiração.
A indignação tem marcas profundas, na luta dos mineiros do Pejão, das trabalhadoras da Clarks, e na queda da ponte de Entre-os-Rios que ainda hoje parece irreal. É como as cicatrizes dos empregos destruídos nos encerramentos das fábricas de calçado ou de cortiça, que a globalização impôs ou o capitalismo explica. Essa indignação caminha com o amor aos de baixo, a empatia com quem é servido ao sacrifício e exploração, a quem o sistema deixa para trás ou desvaloriza.
Serve a introdução para explicar a fibra que me compõe, que me dá forma. Foi esse o caminho que percorri, muito dele com o Joaquim Dias e muitos outros camaradas, para construir um caminho à esquerda num distrito que era (e ainda é) muito conservador, mas em que as lutas pelo trabalho tem raízes fortes.
Cheguei ao Parlamento em 2009. O Bloco de Esquerda elegeu pela primeira vez no distrito de Aveiro e confiaram em mim para encabeçar essa lista. Um matemático com um percurso na informática seria, naturalmente, um peixe fora de água na Assembleia da República. Se consegui ver mais longe, foi por o ter feito aos ombros de gigantes, agradeço a todos. Demorei a enquadrar-me e, ainda hoje, a política me parece mais real fora daquelas paredes, mas tenho um profundo respeito pelo trabalho parlamentar. Fui presidente do grupo parlamentar durante 12 anos, aprendendo todos os dias com camaradas e amigos extraordinários.
Neste tempo, ajudei a construir uma esquerda socialista de valores e convicções. Entre sonhos e resistências, mostramos que só é impossível o que desistirmos de conquistar. Passámos por momentos bons e outros difíceis, por vitórias e derrotas, mas nunca baixámos os braços. Um dos momentos mais marcantes foi o banho de multidão quando derrubámos o Governo das direitas, em 2015. Depois de quatro anos de destruição do país, de ataques ao salário e às pensões, a esperança saiu à rua em estado puro.
Sabíamos que o acordo parlamentar era indispensável, mas também conhecíamos as suas limitações: fechar a porta à política de austeridade da direita não era, ainda, uma viragem para políticas à esquerda. A maioria absoluta do PS e a crise social que cavou mostram como hoje temos de ser muito mais ambiciosos para resolver os bloqueios do país.
Neste tempo conseguimos avanços nos direitos fundamentais, o casamento ou a adoção entre pessoas do mesmo sexo, o alargamento de direitos às uniões de facto, a descriminalização da morte medicamente assistida, eliminámos barreiras no acesso a serviços públicos, lutámos contra a precariedade, combatemos a brutalidade da troika, reforçámos o combate ao enriquecimento ilícito, implementámos as 35 horas de trabalho semanal na administração pública, valorizámos salários e pensões, antecipámos a urgência das respostas à crise climática.
Mostrámos que é no crescimento dos salários que a economia se faz mais forte e justa, e denunciámos a elite económica que vive do privilégio e do monopólio que torna o nosso país mais injusto. E expusemos como as regras europeias, sobre as metas de défice e da dívida, são o garrote do investimento público e atrasam o país. Combatemos a precariedade e a especulação, construímos movimento, fizemos todas as lutas.
A marcação de eleições para 10 de março do próximo ano será o início de um novo ciclo político. As eleições, em democracia, são a devolução da voz ao soberano, para desbloquear a crise política que caiu em cima da crise social. Para mim, este é um momento que marca uma transição.
Decidi que não serei candidato nas listas às próximas eleições legislativas. Cumpri uma das maiores honras da minha vida, dei tudo o que podia e sabia, ajudei a construir esquerda. Penso ser tempo de renovar, cumprir o preceito republicano de que a representação pública tem um tempo limitado e dar o lugar a outros. Tomei esta decisão com a certeza que hoje o Bloco de Esquerda está mais forte, a crescer na opinião pública, e que terá um papel determinante no ciclo político que se avizinha. E que esta renovação o tornará ainda mais forte.
Não é uma despedida da atividade política ou da camaradagem que faz parte do meu ADN. Direi presente a todas as lutas que temos pela frente, fiel aos valores da esquerda, pelos direitos no trabalho, o teto para uma vida digna, a resposta à crise climática, a cultura da solidariedade e a promoção da igualdade como fundamentais para sermos livres.
Não faltarei a nenhuma chamada, sabem que podem contar comigo para tudo.
Artigo publicado no jornal Público a 4 de dezembro de 2023.