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Obrigada, Maria Velho da Costa

Tornar sensível a sua memória é lê-la, continuar a lê-la e abandonar a indiferença na arte e no mundo.

A nota que se segue não é um obituário e muito menos uma recensão da vida e obra de Maria Velho da Costa. Trata-se de uma nota pessoal e – desculpem-me o que já parece ser uma “frase feita”, mas não é – o pessoal é político. Na sua partida, agradecer-lhe o privilégio que é o ter acesso à sua escrita, é o meu sincero gesto de reconhecimento. Tornar sensível a sua memória é lê-la, continuar a lê-la e abandonar a indiferença na arte e no mundo.

Talvez como muitas outras, descobri a escrita de Maria Velho da Costa através das Novas Cartas Portuguesas (1972) e enquanto jovem-adulta à procura das raízes do feminismo português. Essa inspiração original que, como um relâmpago, atordoou o fascismo e as consciências tranquilas do machismo que vigorava na época, é ainda hoje capaz de desassossegar os corpos estagnados no conservadorismo moderno e pretensiosamente esclarecido, o do nosso tempo. Este, bem sabemos, resiste e apresenta-se sob múltiplas formas, com mais ou menos bolor: como ignorância e violência tout court ou como proclamação inócua de igualdade (isenta de autodeterminação, corpo e sexualidade, e reclamando um poder vazio para as mulheres que até se querem mais educadas e a trabalhar mais, mas devem continuar a ser essencialmente “mulheres”, simples variantes submissas de um nome comum). Contou a Maria Teresa Horta que foi a Velho da Costa que teve a ideia. Alargo a invocação às três, sem ordem ou prioridade, e falta-me referir a Maria Isabel Barreno – obrigada. A nossa acção não se inscreve numa cadeia mecânica de acontecimentos. Porém, arrisco dizer que foi preciso esse começo estridente e luminoso (outros houve) para que mais relâmpagos e tempestades se seguissem – daquelas que movem dunas, fazem os rios transbordar e deixam no final um território revolto, aberto a um novo possível, pronto a ser transformado.

Se neste primeiro momento (re)descobri, como Maria Velho da Costa o afirmou, em 2013, quando recebeu o Prémio Vida Literária – APE, que "a literatura e a poesia, são um perigo" para os regimes totalitários, depois, lendo a sua obra singular, (re)aprendi o que é a experiência por inteiro da própria literatura e da poesia, cuja forma não se deixa fixar, apenas vislumbrar nas suas fulgurantes aparições. Não é caso único, felizmente, mas é exemplar. Entre outras evocações contemporâneas possíveis, a minha memória conduz-me, inevitavelmente, para a poesia de António Ramos Rosa.

Obrigada, Maria Velho da Costa, por me permitires sentir essa vertigem intensa e boa que advém do jogo da arte e do sentido das palavras, das configurações inusitadas das imagens nelas convocadas, das frases entrecruzadas de melodia difícil, da erudição que obriga a consultar o dicionário e a história da cultura humana, da imaginação sem regras ou do esgotamento do possível, da comoção e do desconforto que resulta da evocação dos mundos aí desnudados, da experiência do acesso difícil que obriga a revisitações e torna instável a própria realidade que outrora fora água estagnada, do corpo tornado palavra, do prazer de pensar.

Obrigada, Maria Velho da Costa, pelo exemplo de uma literatura que não está aí para o mero entreter das horas vagas, para o conforto da alma com emoções de proximidade, frases simples e escrita sms, ou para a simples alienação, esse voo sem retorno para o entorpecimento generalizado.

Obrigada, Maria Velho da Costa, por tornares claro o que poderá ser um tempo livre ocupado com emancipação e não mero descanso para o renovar da força de trabalho

Obrigada, Maria Velho da Costa, por tornares claro o que poderá ser um tempo livre ocupado com emancipação e não mero descanso para o renovar da força de trabalho.

Nas discussões sobre o modelo de sociedade que queremos construir, o acesso à cultura é um tema vasto e rico em complexidade. Não são só as condições económicas desfavorecidas que geram exclusão. A produção de ignorância generalizada pelos currículos escolares empobrecidos, pelos media irresponsáveis e pelas regras do “mercado” livreiro é, porventura, o muro mais difícil e urgente de derrubar. Num memorável texto apresentado ao primeiro Congresso dos Escritores Portugueses (1976), a escritora descreveu o que é, afinal, esse movimento contrário a todas as suas palavras publicadas, as únicas a que agora todas nós podemos e devemos ter acesso:

“Que escrever para o povo em afã triunfalista, imitando-lhe mal o falar e o sentir para que estanque a vocação de indagar do difícil e do trabalhado, gorando-lhe no embrião o acesso ao seu próprio e complexo património cultural, é ir em missão de colonizador ratificar-lhe o analfabetismo imposto, sonegar-lhe os instrumentos da criação que ainda não pode, iludir pelo aplauso fácil dos explorados do sentido da vida cultural exigente, a própria impotência de renovar-se”.

Na minha humilde biblioteca, tenho um pequeno livro-tesouro, oferecido por aquele tipo de pessoas que nunca poderemos deixar de incluir quando dizemos “eu” e invocamos a nossa história. Trata-se de Corpo Verde, um livro com versos de Maria Velho da Costa e desenhos de Júlio Pomar, pontuados por um erotismo denso e delicado. Porque não tenho o dom do “virtuosismo exemplar” que Eduardo Lourenço reconhece na nossa escritora, transcrevo aqui um desses versos, com a sincera esperança de poder ilustrar a tal vertigem de que falei e que é imagem do seu extraordinário legado, o centro do meu agradecimento:

Deitados num mar de leite veneramos a mesma ilha de metal e osso por dentro da carne e a alma que está na polpa dos dedos e do dorso.1


Nota:

1 Maria Velho da Costa, Corpo Verde, Contexto Editora, 1979, p. 16.

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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