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O veneno dos lugares neutros ou a força das palavras
Este é um tempo desgraçado para os explorados. Tão desgraçado que perderam o direito de se reconhecer a si próprios como explorados: nas nomenclaturas oficiais do novo Estado-sopa-dos-pobres surgem como “assistidos” ou “utentes”, hiperfiscalizados e sujeitos a um infindável rol de estigmas. Dir-se-ia: não é nada de novo; há duas ou três décadas que tal vem acontecendo. Mas não nos iludamos: nunca o processo foi tão rápido e violento. Sabíamos já que, por parte do pensamento hegemónico, as classes sociais se tinham dissipado. Podemos até conceder que na identidade de muitos sujeitos o mesmo desaparecimento estava em marcha. Não se sentiam nem se imaginavam como formando parte de um colectivo dotado de consciência e acção colectiva. Há muito que desapareceram os proletários ou até os operários. “Excluídos”, em suma e no máximo, numa espécie de limbo social de onde poderiam ressurgir uma vez o seu bom comportamento fosse reconhecido por certificados de reconversão e/ou formação profissional. Quer dizer: o apocalipse dos trabalhadores vem de longe, da década de 70, da ascensão liberal pós choques petrolíferos e da extraordinária recuperação que o capitalismo “avançado” operou do imaginário das revoltas dos anos sessenta onde se forjaram boa parte das novas esquerdas: autonomia, criatividade, projecto, flexibilidade, polivalência, empreendedorismo. No auge, cada trabalhador abdicava do contrato social e exilava-se do movimento sindical para se tornar um “verdadeiro artista”: sem horário (ou seja: trabalhando infinitamente mais); gerindo a sua autonomia (ou seja: fazendo tudo e um par de botas, permitindo às organizações estancarem o recrutamento de novos trabalhadores); patrão de si mesmo (e da sua precariedade).
É certo de que nada nos servirá levantar as palavras quando elas ainda não renasceram. Não é pela invocação mágica e propagandística dos “proletários” que eles se erguerão para além da multidão mole, religiosa e inorgânica de Negri e Hardt. A esquerda alternativa tem um longo caminho pela frente, com alguns ganhos já conquistados no percurso mas inúmeras “tentações” pela frente. Ela tem de renunciar ao eufemismo bem comportado e reverente da hegemonia.
Gertrude Stein perdoar-me-á: mas um tumulto é um tumulto é um tumulto e um explorado é um explorado é um explorado.
Comentários
Não posso escrever muito
Não posso escrever muito porque também sou um daqueles "artistas" sem horário. De vez em quando há textos que escapam à atracção de uma pseudo-esquerda que se confunde demasiado com o anarquismo liberal capitalista. É preciso compreender que a liberdade não é apenas nem pouco mais ou menos o direito abstracto de realizar todas as nossas vontades e de subordinar os contratos, de trabalho e outros, ao princípio do livre-arbítrio. Porque não somos mais livres por nos drogarmos, por iniciarmos uma guerra civil ou por alugarmos sem pressão do empregador interessado a nossa força de trabalho. O livre-arbítrio, o direito à expressão, a liberdade de associação, conquistas irredutíveis dos homens, não são todavia valores absolutos além dos quais nada mais tem grande valor. A liberdade é um todo de direitos e deveres formais e materiais ou não é nada.
Há tempos que a esquerda está
Há tempos que a esquerda está iludida e bebendo em fontes liberais, livre arbítrio e o made self man vem do mesmo poço.
Caímos no conto da liberdade de negociação na mesa, mas não lembramos que não temos o mesmo acesso à informação. Ou seja, a multidão mole está em um nível de discussão que os empregadores. O trabalhador abriu mão de direitos pelo pacto social, mas os empresários continuam apoiados na máquina do Estado, como sempre estiveram.
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