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O valor do paradoxo do valor
Quem pegar num qualquer manual de economia irá deparar-se com a seguinte descrição do chamado “paradoxo do valor”: a água, sendo necessária para a vida, vale muito pouco, mas os diamantes, não tendo qualquer utilidade, valem imenso dinheiro. A explicação do paradoxo é dada, então, pelas leis do mercado. O preço de um produto depende da sua escassez e não do seu valor de uso, explicam os manuais. Não sendo incorreta, a explicação está incompleta, porque falta explicar de onde vem a escassez.
O uso ornamental dos diamantes não é nada de novo, remontando a milhares de anos na Índia. Devido ao enorme trabalho que implica extrair e lapidar diamantes, o seu valor económico foi sempre suficientemente elevado para que fosse uma mercadoria reservada à aristocracia. No século XX, contudo, o mercado de diamantes mudou radicalmente, ao ponto de se ter banalizado a aquisição de produtos de luxo como anéis de diamantes. A origem desta mudança pode ser rastreada a uma empresa, a De Beers, que controla a quase totalidade do mercado de diamantes.
Fundada em 1888, na África do Sul, a De Beers controlava todas as minas de diamantes do país. Um ano depois, estabeleceu um acordo comercial com os compradores britânicos que lhe assegurava um preço fixo. Estava dado o primeiro passo para o controlo do preço dos diamantes, baseado no controlo da oferta. Se, devido a uma quebra na procura ou um inesperado aumento da oferta (por exemplo, pela descoberta de novas minas), o preço tendesse a descer, a De Beers reagia vendendo menos diamantes e armazenando o resto.
Este modelo de negócio foi tão bem sucedido que ainda hoje a empresa, que entretanto se expandiu para um monopólio global, consegue evitar que o preço dos diamantes desça, apesar do aumento da produção e da redução dos custos de produção permitidos por avanços tecnológicos. A De Beers conseguiu também estabilizar artificialmente o preço dos diamantes através de campanhas de marketing ambiciosas, começando com a campanha “Os diamantes duram para sempre”, lançada no pós-segunda guerra mundial. Ver a Marilyn a dizer que “os diamantes são os melhores amigos de uma mulher” ou ser bombardeado com imagens de propostas de casamento acompanhadas de anéis de diamantes são algumas das facetas de um esforço publicitário que fez com que a procura de diamantes disparasse. Como a oferta não acompanha a procura, o preço dos diamantes não desce, ao contrário do que acontece com tantas outras mercadorias.
Saber a história de um negócio fundado no colonialismo e sustentado pela manipulação do mercado é relevante para perceber como a escassez pode ser fabricada. Ao contrário do que sugere implicitamente a descrição do paradoxo do valor, não é a natureza que faz com que os diamantes sejam tão raros, mas antes é a força de uma multinacional. Mas se é verdade que o preço dos diamantes poderia ser bastante mais baixo, também é certamente verdade que o preço da água poderia ser bastante mais alto.
Em “Sand Land”, um manga da autoria de Akira Toriyama (conhecido entre nós como o autor de “Dragon Ball”), uma povoação é dominada por um ditador que controla a distribuição da água depois de o rio ter secado. Sendo a água um luxo, a criminalidade torna-se comum, o que leva o chefe da polícia a juntar-se aos demónios que vivem fora da povoação (e que na realidade são mais incompreendidos que maléficos) para encontrarem uma nova fonte de água. No fim da sua aventura, descobrem que o rio tinha secado devido à construção de uma barragem pelo ditador. Destruída a barragem, a água volta a correr no rio e o reinado do opressor que monopolizava a distribuição de água desmorona-se.
O conto fantasioso ilustra como o preço da água pode aumentar à medida que uma entidade, como uma empresa, ganha o controlo sobre a sua distribuição e assim consegue regular sua escassez. Por isso mesmo é criminoso privatizar a água, porque pode levar a que, no limite, possa ser um produto tão ou mais caro que os diamantes. Disso sabem-no os habitantes de todas as cidades em que a distribuição de água foi entregue a privados, sendo posteriormente forçados a pagar cada vez mais por um bem essencial à vida para que empresas enriqueçam à sua custa.
Mais importante que saber como o preço de um produto depende mais da sua escassez que da sua utilidade ou valor de uso é saber como é controlada, regulada e manipulada a escassez. Discutir isto é debater a irracionalidade do capitalismo e a necessidade de controlar os mercados, de forma a que ninguém se possa apoderar da distribuição de bens essenciais à vida. Infelizmente, esta lição não consta dos manuais de economia.
Comentários
Um bom artigo!
Um bom artigo!
Há alguns coisas que devia esclarecer, a bem de um melhor debate.
O que é a utilidade de uso? Como se mede? Parece-me absurdamente subjectivo...
O exemplo dos diamantes é óptimo, mas está a resumir o mercado à procura... Porque não há mais empresas, a oferecer diamantes a preços mais baixos, se há possibilidade de arbitragem? Essa parece-me ser a questão essencial. As empresas são livres de impôr o seu preço desde que haja (verdadeira) concorrência.
Aliás, a ideia da destruição da barragem é precisamente isso! :D
Obrigado pelo comentário.
Obrigado pelo comentário.
O valor de uso é imensurável e subjetivo mas nem por isso deixa de ser real. Tão real como o valor de troca, que é mensurável e objetivo.
Quanto à oferta de diamantes, a questão é que a De Beers conseguiu criar um mercado para diamantes com um preço regulado porque conseguiu monopolizar a oferta comprando todas as minas em África. Hoje o domínio da empresa é menor, porque há concorrentes por exemplo do Canadá, mas a empresa continua a ter suficiente peso para determinar nos seus leilões o preço dos diamantes. Por outro lado, as empresas concorrentes podem ter interesse em vender diamantes a um preço ligeiramente mais baixo para obter uma maior fatia do mercado (se bem que enfrentariam a competição de uma mega-empresa que domina o mercado) mas nenhuma teria interesse em inundar o mercado com diamantes baratos, porque isso destruiria as suas margens de lucro. Verdadeira concorrência é algo que apenas existe nos manuais de economia, não nos mercados reais.
A ideia da destruição da barragem é essa, sim, mas a diferença é que quem o fez foram rebeldes e não empresas.
Mas o mercado está trazendo
Mas o mercado está trazendo novas tecnologias e produtos, como o diamante sintético feito em laboratório que é idêntico ao da natureza. Monopólios começam, mas um dia acabam e a maior revolução do nosso tempo não são os rebeldes que estão propiciando, mas o próprio capitalismo e o empreendedorismo é só navegar por esses sites de crowdfounding e verificar os projetos. Essa empresa vem de uma outra época de quando os primeiros capitalistas eram grandes famílias burguesas apadrinhadas por reinados e países. A era da informação está criando uma revolução no capitalismo.
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