No início de Março, foi aprovado um tratado fiscal entre 25 estados membros da União Europeia1, que deverá entrar em vigor no próximo ano, caso seja ratificado. O acordo é uma versão recauchutada da proposta de alteração ao Tratado Europeu, que foi vetada pelo Reino Unido a 9 de Dezembro de 2011, numa reunião do Conselho Europeu. Como todos os tratados europeus, este acordo é altamente relevante para a nossa vida política, na medida em que impõe obrigações ao nosso governo. Mas, como acontece com todos os tratados europeus, é impossível encontrar uma descrição minimamente satisfatória das suas normas na comunicação social, pelo que se justifica fazermos nós este estudo.
O “Compacto Fiscal”, como ficou conhecido, prevê um agravamento das restrições à política orçamental. Como é sabido, o Plano de Estabilidade e Crescimento já obriga os estados membros da UE a manter o seu défice orçamental abaixo de 3%. Com as novas regras, acresce a obrigação de manter o défice estrutural abaixo dos 0.5%. Mas o que é isso, então, do défice estrutural?
Vamos por partes. O défice orçamental já sabemos como calcular: subtrai-se às receitas do Estado as suas despesas. Simples. Já o défice estrutural, diz-nos a definição, é o défice orçamental que um país teria caso não existissem ciclos económicos, ou seja, caso o PIB estivesse no seu nível potencial. Nada simples.
Para calcular o défice estrutural, explica-nos o Corporate Europe Observatory2, podemos aplicar a seguinte fórmula:
Défice estrutural = Défice orçamental – Défice cíclico – Medidas extraordinárias
Mas expor a fórmula deixa-nos no mesmo ponto. Sabemos que uma parte do défice se deve aos chamados ajustadores automáticos, que fazem com que o défice varie com o ciclo. Assim, por exemplo, em período de recessão o desemprego é superior, pelo que as receitas com impostos sobre o rendimento serão menores e as despesas com o subsídio de desemprego serão superiores. Sabemos também que uma parte do défice se deve a medidas tomadas pelos governos. Se conseguirmos separar o primeiro do segundo, conseguiremos distinguir o défice cíclico do défice estrutural. Mas como o podemos fazer de forma minimamente fiável quando aparece tudo misturado nas contas públicas? E como distinguir despesas “normais” de despesas “extraordinárias”?
Aqui entramos no domínio da numerologia. Existem vários métodos para calcular o défice estrutural, que não vou explicar aqui por medo de que ninguém tivesse coragem para ler este texto até ao fim. Mas não há qualquer consenso sobre qual método é “o melhor”. O FMI e a OCDE publicam dados sobre o défice estrutural para vários países, usando métodos diferentes. Mas na Europa, a Comissão Europeia usa outro método, que difere ainda do usado pelo Banco Central Europeu e pelos estados membros que fazem este cálculo. Uma confusão, portanto.
Quando não é possível resolver um problema como estes pela via técnica, a solução que resta é a judicial. Prevê o “Compacto Fiscal”, portanto, que um estado membro poderá ser punido, com uma multa de 0.1% do PIB, caso outro estado membro faça uma queixa junto do Tribunal de Justiça Europeu. A queixa junto do tribunal europeu será automática caso a Comissão Europeia delibere que um estado membro não estará a tomar as medidas necessárias para cumprir o limite para o défice estrutural. No fim, será a este tribunal que competirá resolver as divergências técnicas que economistas e contabilistas são incapazes de resolver.
O tratado prevê a criação de corpos técnicos independentes em cada estado membro para vigiar as ações dos governos e assegurar que cumprem as regras de política orçamental. Prevista está também a fixação das novas regras de austeridade numa lei que não seja facilmente alterável, como a constituição. Angela Merkel, numa conferência de imprensa em janeiro, foi extremamente clara quanto ao objetivo do tratado: “Os travões à dívida serão vinculativos e eternamente válidos. Não serão nunca alteráveis através de uma maioria parlamentar”3. Entra a austeridade permanente, sai a democracia.
Caso este tratado passe nos parlamentos nacionais, será dada a machadada final na possibilidade de um governo usar a política orçamental para combater as recessões. Tendo em conta que a política cambial e a política monetária estão já fora do alcance dos governos nacionais, não sobra aos governos qualquer política económica anti-cíclica. O ajustamento terá de se dar, portanto, pelo fator trabalho. Entendamos bem o que isto implica. Em momentos de recessão, o desemprego aumenta, a precariedade aumenta e os salários baixam. Complementarmente, há um desinvestimento total na proteção social e nos serviços públicos. Assim se consegue restaurar a competitividade.
Este cenário, assustador para qualquer pessoa que não esteja na administração de uma empresa, está bem expresso em relatórios da Comissão Europeia que apresentam a “rigidez” do mercado de trabalho e o “excessivo” peso do Estado Social como os principais travões ao crescimento4. A receita austeritária para a competitividade foi também expressa de forma clara no pacto “Europlus”, um acordo negociado pelos países da Zona Euro em março de 2011 e que previa a precarização das relações de trabalho, o aumento da idade de reforma e o corte nas despesas sociais5.
Esta é a realidade da ofensiva neoliberal que devasta a Europa e que em Portugal é representada pela “troika” FMI-BCE-CE. Uma ofensiva que nos pretende transformar em joguetes dos que dominam a economia e que arrasa não só com a democracia e a solidariedade mas até com a dignidade humana.
O “Compacto Fiscal” foi rejeitado pela Confederação Europeia de Sindicatos, num movimento inédito, mas foi elogiado pela organização que representa os capitalistas europeus, a BusinessEurope, que vinha pressionando as autoridades europeias no sentido do apertamento das regras de “disciplina orçamental” (leia-se corte nas despesas sociais). Na próxima semana, quando o tratado for discutido no parlamento, saberemos de que lado estará cada partido, se do lado da maioria que trabalha se do lado da minoria que vive dos rendimentos do trabalho.
2 CEO, “10 things you need to know about the fiscal compact”, em http://www.corporateeurope.org/publications/automatic-austerity
3 Tradução do autor. Original em http://www.guardian.co.uk/business/2012/jan/30/eu-summit-eurozone-treaty-deal
4 Por exemplo, o relatório “Macro-Structural Bottlenecks to Growth in EU Member States ” exalta as virtudes de uma legislação laboral mais “flexível”, com maior facilidade de despedimento, menor poder para a negociação coletiva e menor proteção no desemprego. Caso sejam criadas as condições para que os salários em Portugal desçam mais rapidamente em contexto de crise, explica a Comissão liderada por Durão Barroso, teremos um país mais próspero. Ver http://ec.europa.eu/economy_finance/publications/occasional_paper/2010/pdf/ocp65_en.pdf