O tratado da austeridade eterna

porRicardo Coelho

05 de abril 2012 - 0:00
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Caso este tratado passe nos parlamentos nacionais, será dada a machadada final na possibilidade de um governo usar a política orçamental para combater as recessões.

No início de Março, foi aprovado um tratado fiscal entre 25 estados membros da União Europeia1, que deverá entrar em vigor no próximo ano, caso seja ratificado. O acordo é uma versão recauchutada da proposta de alteração ao Tratado Europeu, que foi vetada pelo Reino Unido a 9 de Dezembro de 2011, numa reunião do Conselho Europeu. Como todos os tratados europeus, este acordo é altamente relevante para a nossa vida política, na medida em que impõe obrigações ao nosso governo. Mas, como acontece com todos os tratados europeus, é impossível encontrar uma descrição minimamente satisfatória das suas normas na comunicação social, pelo que se justifica fazermos nós este estudo.

O “Compacto Fiscal”, como ficou conhecido, prevê um agravamento das restrições à política orçamental. Como é sabido, o Plano de Estabilidade e Crescimento já obriga os estados membros da UE a manter o seu défice orçamental abaixo de 3%. Com as novas regras, acresce a obrigação de manter o défice estrutural abaixo dos 0.5%. Mas o que é isso, então, do défice estrutural?

Vamos por partes. O défice orçamental já sabemos como calcular: subtrai-se às receitas do Estado as suas despesas. Simples. Já o défice estrutural, diz-nos a definição, é o défice orçamental que um país teria caso não existissem ciclos económicos, ou seja, caso o PIB estivesse no seu nível potencial. Nada simples.

Para calcular o défice estrutural, explica-nos o Corporate Europe Observatory2, podemos aplicar a seguinte fórmula:

Défice estrutural = Défice orçamental – Défice cíclico – Medidas extraordinárias

Mas expor a fórmula deixa-nos no mesmo ponto. Sabemos que uma parte do défice se deve aos chamados ajustadores automáticos, que fazem com que o défice varie com o ciclo. Assim, por exemplo, em período de recessão o desemprego é superior, pelo que as receitas com impostos sobre o rendimento serão menores e as despesas com o subsídio de desemprego serão superiores. Sabemos também que uma parte do défice se deve a medidas tomadas pelos governos. Se conseguirmos separar o primeiro do segundo, conseguiremos distinguir o défice cíclico do défice estrutural. Mas como o podemos fazer de forma minimamente fiável quando aparece tudo misturado nas contas públicas? E como distinguir despesas “normais” de despesas “extraordinárias”?

Aqui entramos no domínio da numerologia. Existem vários métodos para calcular o défice estrutural, que não vou explicar aqui por medo de que ninguém tivesse coragem para ler este texto até ao fim. Mas não há qualquer consenso sobre qual método é “o melhor”. O FMI e a OCDE publicam dados sobre o défice estrutural para vários países, usando métodos diferentes. Mas na Europa, a Comissão Europeia usa outro método, que difere ainda do usado pelo Banco Central Europeu e pelos estados membros que fazem este cálculo. Uma confusão, portanto.

Quando não é possível resolver um problema como estes pela via técnica, a solução que resta é a judicial. Prevê o “Compacto Fiscal”, portanto, que um estado membro poderá ser punido, com uma multa de 0.1% do PIB, caso outro estado membro faça uma queixa junto do Tribunal de Justiça Europeu. A queixa junto do tribunal europeu será automática caso a Comissão Europeia delibere que um estado membro não estará a tomar as medidas necessárias para cumprir o limite para o défice estrutural. No fim, será a este tribunal que competirá resolver as divergências técnicas que economistas e contabilistas são incapazes de resolver.

O tratado prevê a criação de corpos técnicos independentes em cada estado membro para vigiar as ações dos governos e assegurar que cumprem as regras de política orçamental. Prevista está também a fixação das novas regras de austeridade numa lei que não seja facilmente alterável, como a constituição. Angela Merkel, numa conferência de imprensa em janeiro, foi extremamente clara quanto ao objetivo do tratado: “Os travões à dívida serão vinculativos e eternamente válidos. Não serão nunca alteráveis através de uma maioria parlamentar”3. Entra a austeridade permanente, sai a democracia.

Caso este tratado passe nos parlamentos nacionais, será dada a machadada final na possibilidade de um governo usar a política orçamental para combater as recessões. Tendo em conta que a política cambial e a política monetária estão já fora do alcance dos governos nacionais, não sobra aos governos qualquer política económica anti-cíclica. O ajustamento terá de se dar, portanto, pelo fator trabalho. Entendamos bem o que isto implica. Em momentos de recessão, o desemprego aumenta, a precariedade aumenta e os salários baixam. Complementarmente, há um desinvestimento total na proteção social e nos serviços públicos. Assim se consegue restaurar a competitividade.

Este cenário, assustador para qualquer pessoa que não esteja na administração de uma empresa, está bem expresso em relatórios da Comissão Europeia que apresentam a “rigidez” do mercado de trabalho e o “excessivo” peso do Estado Social como os principais travões ao crescimento4. A receita austeritária para a competitividade foi também expressa de forma clara no pacto “Europlus”, um acordo negociado pelos países da Zona Euro em março de 2011 e que previa a precarização das relações de trabalho, o aumento da idade de reforma e o corte nas despesas sociais5.

Esta é a realidade da ofensiva neoliberal que devasta a Europa e que em Portugal é representada pela “troika” FMI-BCE-CE. Uma ofensiva que nos pretende transformar em joguetes dos que dominam a economia e que arrasa não só com a democracia e a solidariedade mas até com a dignidade humana.

O “Compacto Fiscal” foi rejeitado pela Confederação Europeia de Sindicatos, num movimento inédito, mas foi elogiado pela organização que representa os capitalistas europeus, a BusinessEurope, que vinha pressionando as autoridades europeias no sentido do apertamento das regras de “disciplina orçamental” (leia-se corte nas despesas sociais). Na próxima semana, quando o tratado for discutido no parlamento, saberemos de que lado estará cada partido, se do lado da maioria que trabalha se do lado da minoria que vive dos rendimentos do trabalho.


2 CEO, “10 things you need to know about the fiscal compact”, em http://www.corporateeurope.org/publications/automatic-austerity

4 Por exemplo, o relatório “Macro-Structural Bottlenecks to Growth in EU Member States ” exalta as virtudes de uma legislação laboral mais “flexível”, com maior facilidade de despedimento, menor poder para a negociação coletiva e menor proteção no desemprego. Caso sejam criadas as condições para que os salários em Portugal desçam mais rapidamente em contexto de crise, explica a Comissão liderada por Durão Barroso, teremos um país mais próspero. Ver http://ec.europa.eu/economy_finance/publications/occasional_paper/2010/pdf/ocp65_en.pdf

Ricardo Coelho
Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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